Essenciais para o planeta, manguezais no Nordeste são ‘sufocados’ por petróleo
Por Juliana Gragnani, BBC
O petróleo que há quase dois meses atinge a costa brasileira no maior acidente ambiental do país em extensão e duração chegou aos manguezais —e isso é grave.
Primeiro, porque os manguezais são “ecossistemas essenciais” para o planeta, como são unânimes em descrever os especialistas. Segundo, porque é praticamente impossível retirar o petróleo dessas regiões.
O óleo chegou a manguezais em pelo menos três Estados. Em Pernambuco, atingiu pelo menos sete rios. Também chegou a áreas de mangue em estuários de Sergipe e da Bahia.
Manguezais são ecossistemas costeiros, de transição entre a terra e o mar, que ficam em regiões tropicais e subtropicais do planeta. É ali onde ficam aquelas plantas retorcidas por cima da lama escura que, de acordo com a maré, ora ficam cobertas pela água salgada do mar, ora ficam expostas com as raízes fincadas na água que se mistura à dos rios.
Peixes, camarões, moluscos, caranguejos e outros organismos habitam esses ecossistemas.
O Brasil tem quase 14 mil quilômetros quadrados de áreas de manguezais, segundo o Atlas dos Manguezais do Brasil, um documento produzido pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) publicado em 2018.
Além disso, o país tem a maior extensão contínua de manguezais do mundo, e fica em segundo ou terceiro lugar entre os países com maior área de manguezal — a classificação muda de acordo com a metodologia aplicada.
“Meu medo é que a gente dê muita atenção para a praia e se esqueça de olhar para o manguezal, onde tem o berçário das espécies. Isso vai ter impacto a médio e longo prazo muito grande”, diz à BBC News Brasil Marcio Alves-Ferreira, professor do Departamento de Genética da UFRJ que pesquisou o impacto de petróleo em plantas de mangue.
E por que os manguezais são tão importantes para a natureza?
Eles prestam uma série de “serviços”, de acordo com a professora do Instituto Oceonográfico da USP, Yara Schaeffer Novelli, e o biólogo e oceanógrafo Clemente Coelho Júnior, professor da Universidade de Pernambuco que está participando do trabalho de retirada de petróleo das praias. Ambos são fundadores do BiomaBrasil, instituto que dá capacitações formal e informal sobre conservação da biodiversidade.
Eles citam algumas dessas funções dos manguezais:
- Berçário natural: de 70% a 80% das espécies de importância econômica passam pelo menos uma fase da vida nos sistemas de manguezal, o que faz com que os mangues sejam conhecidos como os “berçários naturais” da vida marinha. Ali, os filhotes ficam em seus primeiros estágios de desenvolvimento, aproveitando o ambiente mais calmo, onde as raízes das árvores dão proteção e eles. Como é um ambiente cheio de nutrientes, os filhotes também têm alimentação ali. Depois, migram para o mar aberto.
- Protege de processo natural de erosão: o mangue atenua o processo de erosão costeiro, protegendo todo litoral. A pressão e energia do mar que atingiriam a costa são dissipadas no mangue. “O manguezal protege as costas das ações de ressacas, de tsunamis. Isso foi bem provado no tsunami de 2004, no dia 26 de dezembro em Sumatra [Indonésia]. Onde ainda havia manguezal, as comunidades que estavam por trás dessa barreira natural foram menos prejudicadas que aquelas comunidades que já haviam substituído os manguezais por resorts, plantações de arroz e outros”, lembra Schaeffer Novelli.
- Filtro biológico: a floresta tem capacidade de “digerir” matéria orgânica e absorver muitos nutrientes. Se esgoto é lançado no rio, por exemplo, os mangues filtram isso, retendo as substâncias, absorvendo nutrientes e acumulando em sua biomassa.
- Retenção de sedimentos: os rios correm arrastando solo e sedimentos, e quando chegam no estuário as partículas se acumulam nas raízes do mangue. Isso significa que o mangue cuida do leito do rio, assoreando, retendo os sedimentos antes de chegarem ao mar, garantindo uma água mais limpa na zona costeira.
- Combate ao aquecimento global: dentro dos ecossistemas, as florestas de mangue são as que mais sequestram carbono da atmosfera. Isso significa que o mangue ajuda a combater o aquecimento global. “O manguezal tem importância nesse contexto moderno das mudanças climáticas por ser muito eficiente fixador e acumulador de carbono”, diz Schaeffer Novelli.
- Importância cultural e cênica: em muitas regiões as áreas de manguezal são tidas como sagradas. Além disso, sua beleza cênica é importante para o turismo.
‘Como é que vai ficar a situação para quem vive só da pesca?’
A chegada do petróleo tem um impacto não apenas no ecossistema como também na renda de quem depende dele para sobreviver.
“Aqui no nosso estuário de Rio Formoso nós infelizmente já demos de cara com esse óleo. Tivemos sorte porque foi uma maré pequena. Mesmo assim, chegou a afetar os manguezais. Pouco, mas afetou”, diz Francisco Assis, de 65 anos, pescador e secretário da colônia de pescadores de Rio Formoso, a 88km do Recife (PE).
Ele faz parte de um grupo de pescadores e voluntários que têm se empenhado para limpar os manguezais.
Ali, ele diz, há famílias inteiras que vivem da pesca. A colônia que representa tem cerca de 300 pescadores, mas ele estima que no município todo cerca de 2 mil pessoas trabalhem com a pesca, ganhando cerca de um salário mínimo (R$ 998) por mês, às vezes trabalhando com o corte de cana-de-açúcar de dia e a pesca à noite.
“Lá dentro é onde estão os moluscos, onde as marisqueiras… O sururu, o marisco, a ostra, aratu, caranguejo. Com a penetração desse óleo, vai comprometer todos esses seres vivos. Tudo isso é complicado para nós, pescadores. Sem contar a grande contaminação no peixe. Já encontramos peixe mortos no estuário. Isso dificulta para muito pescadores”, lamenta. “Como é que vai ficar a situação para quem vive só da pesca?”
Ele faz uma pausa na entrevista à BBC News Brasil para conversar com outros pescadores que o procuravam. Ele conta o que disseram: “Uma pescadora comeu um peixe e depois passou mal. E depois outro pescador foi para a cidade vender os peixes. Chegando lá, eles estavam todos podres, sem condições de venda”.
Esse impacto do petróleo nos manguezais é o mais próximo dos humanos. Mas por trás dele há todo um processo que afeta as plantas e os organismos, de forma imediata e depois de forma crônica.
Manguezal ‘sufocado’
Ao chegar ao manguezal, o petróleo primeiro provoca um impacto agudo, diz Coelho Júnior à BBC News Brasil. Dependendo da maré, pode recobrir as raízes das plantas de mangue, o caule das árvores e os organismos que vivem ali.
Quando plantas de manguezais são atingidas por petróleo, elas sofrem o que se chama de “estresse”. “As plantas são acostumadas a ficar sem água ou a ficar na água com sal. Mas elas não estão adaptadas a lidar com esse tipo de estresse do petróleo. Elas sofrem”, diz Ferreira, o professor do Departamento de Genética da UFRJ. Ele é autor de um estudo publicado em 2018 que avaliou o que acontece geneticamente com as plantas expostas a petróleo.
Ele diz que a reação das plantas observadas em sua pesquisa foi a seguinte: hipóxia, que é a falta de oxigênio e que impede que a planta respire, e estresse por calor, já que o petróleo impede a transpiração da planta para diminuir sua temperatura. Cobertas, as árvores também podem deixar de executar a fotossíntese e morrer.
Com a planta sob estresse, “o bioma passa a sofrer por conta de seu estado”. Isso porque as plantas vão cessar sua atividade de crescimento e deixar de se reproduzir, sem produzir flores e sementes. Também não produzem novas raízes ou folhas, de onde animais se nutrem e se alimentam.
Segundo Ferreira, com a ausência dessa produção, os animais vão deixar a região, e em curto prazo será possível notar uma redução do pescado. Isso atrapalha toda a cadeia alimentar. Além disso, não haverá plantas novas para substituir as que morreram.
Depois, há um impacto crônico. Quando o petróleo começar a se decompor, vai liberar moléculas que podem ser nocivas. Os animais que entrarem em contato com as moléculas dissolvidas podem ter respostas de deformação de tecidos e órgãos, levando até à morte.
E, se não morrerem, isso pode ser transferido na cadeia alimentar para aves que os consomem, por exemplo, e inclusive para humanos, que também consomem esses animais.
“Participei como perita judicial no caso de derramamento de óleo de 1983 no canal da Bertioga, que atingiu área muito grande de manguezal. Esse óleo impregnou no manguezal. As árvores perderam suas folhas, galhos, troncos”, relata Schaeffer Novelli, da USP. “Matou todo o bosque, e esse óleo até hoje continua aprisionado no substrato daquele manguezal.”
Todos os pesquisadores concordam que é muito difícil tirar o petróleo dos manguezais. Não existe protocolo no mundo sobre como fazer isso. É muito difícil tirar o petróleo incrustado nas raízes e troncos, e não dá para salvar os animais expostos, como os caranguejos, por exemplo, como é possível com tartarugas.
“Na praia é relativamente fácil para limpar, até. Quando chega no mangue, o petróleo cobre as raízes das plantas, e as plantas são especiais. Sufoca o manguezal. Não tem como tirar isso de maneira simples como se faz na praia. É dramático”, diz Alexandre Soares Rosado, professor titular da UFRJ, do Instituto de Microbiologia. “Eu diria que é impossível”, afirma Schaeffer Novelli, da USP.
E agora?
Por isso, a palavra que todos os especialistas repetem é “prevenir”.
O Estado de Pernambuco colocou barreiras na desembocadura de oito rios. Em Sergipe, o governo federal só colocou barreiras depois de uma decisão da Justiça provocada por um pedido do Ministério Público. O governo argumentou que as barreiras não funcionariam.
“Nos casos em que o óleo derramado é de origem conhecida e sua dispersão é prevista, a instalação de barreiras em águas calmas é tecnicamente recomendável para proteger pontos sensíveis, como manguezais. Contudo, se os manguezais já estiverem oleados, a medida poderá provocar o efeito inverso e impedir a depuração natural do ambiente”, disse o Ibama, em nota.
Clemente diz que não funcionam necessariamente 100%, mas já ajudam — ele viu o petróleo sendo retido em um barreira. “A questão agora não é se vai funcionar ou não. Temos que testar tudo o que pudermos. Não sabemos ainda quanto de petróleo vai chegar, então temos que recorrer a todas as coisas possíveis e imagináveis”, diz ele, que também ressalta ser importante conter “as grandes manchas ainda em alto-mar”.
Para Schaeffer Novelli, depois da contaminação será preciso fazer um monitoramento para entender o quão grave foi a contaminação. E também “um rescaldo, como depois de um grande incêndio: ver quanto custou, qual foi o prejuízo que os pescadores e marisqueiros tiveram, que os que têm jangadas e fazem passeios na zona costeira tiveram”, entre outros.
Rosado, do Instituto de Microbiologia da UFRJ, já testou uma solução que normalmente fica restrita a laboratórios.
Em 2010, ele e outros pesquisadores fizeram um teste na Baía de Todos-os-Santos, que estava contaminada com petróleo. O que fizeram se chama biorremediação. O mangue tem bactérias já adaptadas para degradar hidrocarbonetos — e o petróleo é formado por hidrocarbonetos. Então, os cientistas usaram um coquetel de bactérias do próprio manguezal para degradar diferentes partes do óleo.
Como os manguezais não estão preparados para degradar tantos hidrocarbonetos, cientistas entram como médicos, fazem um diagnóstico e balanceiam a “dieta” do manguezal.
O experimento deu certo, mas Rosado diz que não existe fórmula mágica e será preciso avaliar cada contaminação em cada manguezal, já que há diferentes tipos de contaminação e diferentes tipos de manguezais. Não há garantias de que dê certo. Ele também usou a biorremediação na estação brasileira da Antártida, que pegou fogo em 2012 e deixou o solo contaminado com diesel.
Schaeffer Novelli diz esperar que os efeitos dessa contaminação de petróleo nos manguezais no nordeste do Brasil não sejam “tão dramáticos”. “O óleo que está chegando é muito denso. Já perdeu grande parte de seus subprodutos químicos”, diz ela. Então, o maior efeito desse petróleo pode ser “físico, de recobrir as estruturas”.
“Esse óleo não deve penetrar tanto quanto um óleo mais novo, mais recente, mais fino, com componentes mais aromáticos como o de 1983 [do canal de Bertioga, onde ela trabalhou como perita]. Eu quero demais acreditar que o efeito seja mais físico, de recobrimento, ficando mais nas franjas, e que seus efeitos não sejam tão dramáticos.”
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