Sobre a cabeça, os aviões: as histórias de crianças expostas aos agrotóxicos
Era uma manhã qualquer de aula na Escola Municipal Rural São José do Pontal, no Projeto de Assentamento Pontal dos Buritis, em Rio Verde (GO). Durante o recreio, crianças lanchavam e brincavam no recém construído parquinho, enquanto estudantes mais velhos ocupavam a quadra de esportes ao lado. Professores e professoras ocupavam o alojamento. Entre as eufóricas vozes das crianças que se revezavam entre balanços e escorregador, o barulho de um avião ecoou no alto.
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Ao olharem para o céu, viram-o sobrevoar suas cabeças. No mesmo instante, inúmeras gotículas de um líquido ainda desconhecido começaram a cair sob seus corpos e alimentos. “Chuva, chuva”, gritou Wendy de Lima, aluna de oito anos, do quarto ano do Ensino Fundamental. E começaram a correr ainda mais debaixo, entusiasmados, numa brincadeira que minutos depois e num futuro próximo se tornaria um pesadelo.
Assista ao documentário “Sobre a cabeça, os aviões” que traz depoimentos de ex-alunos, professores, pais e de outras crianças que continuam expostas aos impactos do agronegócio e seus venenos em comunidades do campo no estado.
A chuva, na verdade, era de veneno. A escola, que fica muito próxima a extensas lavouras de soja e milho, se tornou palco do caso criminoso de pulverização aérea do agrotóxico Engeo Pleno, produzido pela empresa Syngenta, que envenenou cerca de cem pessoas na ocasião. Prestes a completar 10 anos, o crime segue sem a devida reparação e ainda provoca sérios danos à saúde das pessoas atingidas.
O agrotóxico Engeo Pleno, de nome técnico Tiametoxam e Lambda-cialotrina, é um produto de classe toxicológica 4 – produto pouco tóxico e classificação ambiental 1 – extremamente perigoso, e foi aplicado de forma irregular pela aeronave pertencente à empresa Aerotex Aviação Agrícola LTDA**, já que a pulverização aérea do veneno, de acordo com informações da bula, não é permitida em culturas de milho, como foi o caso.
Em 2018, o Ministério Público Federal condenou a Syngenta, junto com a Aerotex, a indenizar 92 alunos, professores e funcionários da escola. A Justiça Federal proferiu a sentença no julgamento de uma Ação Civil Pública, que pedia indenização por danos morais de R$ 10 milhões, porém, a indenização foi apenas de R$ 150 mil.
Desde o dia 03 de maio de 2013, crianças e adolescentes, hoje adultos, além de professores, professoras e funcionários enfrentam doenças, traumas e marcas que são resultados da ação ilegal. Wendy narra, agora aos 19 anos, que ao longo do tempo desenvolveu um problema nos olhos devido à exposição ao pesticida. “Como ficamos debaixo olhando, caiu muito (veneno) nos olhos, e eles ficaram ressecados”. E essa realidade não se restringe ao caso de Rio Verde.
Como ficamos debaixo olhando, caiu muito (veneno) nos olhos, e eles ficaram ressecados.
Wendy de Lima Estudante, na época com 8 anos
Os recentes afrouxamentos na legislação ambiental frente a utilização de agrotóxicos no país têm provocado o aumento do seu uso indiscriminado e ilegal, além das contaminações de comunidades camponesas por meio da pulverização aérea. Paralelo a isso, a predominância do agronegócio na região coloca Goiás nas principais posições dos rankings anuais. De acordo com pesquisa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), divulgada em agosto deste ano, o estado deve ocupar o quinto lugar no ranking nacional do Valor Bruto da Produção (VBP) Agropecuária em 2022, representando aumento de 3,7% em relação a 2021. Só o tomate será responsável por 6,1% da agricultura de Goiás.
Agrotóxicos e o futuro em risco
A ligação entre o aumento do uso de agrotóxicos com os recordes de produção agropecuária do estado é percebida quando populações do campo denunciam impactos cada vez maiores. Nos últimos anos, ouvir barulhos e avistar aviões pulverizadores sobrevoando casas passou a ser comum no Assentamento Dom Fernando, vizinho da Fazenda Califórnia, pertencente a Agropecuária Califórnia LTDA, no município de Itaberaí (GO). Ali, crianças e adolescentes às vezes se encantam e até sonham em ter um avião amarelo parecido, mas, na contramão do sonho, sentem o cheiro, a ardência e a coceira dos agrotóxicos em contato com a pele.
Diante desse contexto, não só o presente, mas todo o futuro daquelas pessoas está em risco. A pulverização aérea tornou-se realidade não só nas culturas de tomate, feijão e soja, próximas às parcelas dos assentados. Mais recentemente, desde 2021, também foram registrados sobrevoos de aviões pulverizadores em plantações de mandioca localizadas em pequenas porções de terra dentro do próprio assentamento, que têm sido arrendadas, a menos de 150 metros das casas – o que não é permitido pela legislação atual. Atualmente, o artigo 11 da Lei Estadual n° 19.423/16 estabelece os mesmos parâmetros da Instrução Normativa (IN) nº 02/2008 do Mapa, que indica pelo menos 500 metros de distância de povoações.
No Assentamento Leonir Orback, em Santa Helena de Goiás, região próxima a Rio Verde – berço do agronegócio no estado, a realidade é ainda mais grave. No quintal do barraco, Helena fabrica bolinho de terra, Maria cuida das galinhas e Ana Carolina rega as diversas plantas do canteiro. Em uma brusca ruptura, o barulho do avião surge e logo se ouve Luciana, mãe das três meninas, gritar para que todas entrem para dentro o mais rápido possível. É o que relata a mãe ao contar sobre os constantes combates de veneno nas lavouras de cana-de-açúcar, soja e sorgo vizinhas.
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No acampamento, apenas uma cerca de arame divide a estreita faixa de terra ocupada das imensas fazendas que cercam os barracos. As famílias ali acampadas disputam, desde 2015, uma área com cerca de 15 mil hectares e que acumula aproximadamente R$1 bilhão em dívidas com a União. Em meio a luta pela terra, as famílias lidam com o vento que espalha o agrotóxico e intoxica de crianças a idosos. A preocupação com as crianças é principalmente em relação à saúde no futuro, diante dos crescentes casos de ocorrência de doenças crônicas ligadas à exposição direta a compostos químicos utilizados nos combates.
A vida dessas crianças, que brota do chão camponês, se faz cotidianamente nos pés descalços sob a terra vermelha e no correr solto pelo quintal. Além do medo do adoecimento, a angústia de ser obrigado a deixar esse lugar e ir para a cidade. “Aqui não passa carro, dá para passear com o meu ‘loro’”, conta Samira, 10 anos.
* Procurada pela reportagem, a empresa Aerotex Aviação Agrícola LTDA não respondeu até o fechamento dos conteúdos.
**Esta reportagem foi financiada por uma bolsa promovida pela Alter Conteúdo Relevante e pelo #Colabora, em parceria com a Fundação Heinrich Böll, para promover e aprofundar o debate sobre o uso de agrotóxicos e suas consequências.Amanda Costa e Fausto Borges
Amanda Costa é jornalista, documentarista e fotógrafa formada pela Universidade Federal de Goiás (UFG), atua na cobertura de pautas relativas aos direitos humanos no Brasil. Em 2018, realizou o premiado curta-metragem “Acolá, um ser-tão”. Atualmente realiza trabalhos para a Comissão Pastoral da Terra (CPT) nacional, entre eles reportagens sobre as realidades dos povos no campo.
Fausto Borges é jornalista pela Universidade Federal de Goiás (UFG), especialista em cinema pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) e analista de comunicação da Agência Brasil Central, onde dirige o programa TBC Memória e apresenta o Curta Goiás. Fundador do Perro Loco – Festival de Cinema Universitário Latino-Americano, em 2007, trabalhando em todas as 6 edições.
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