Rio Tocantins, o Cerrado que banha a Amazônia
Nascido no Planalto de Goiás, a cerca de mil metros de altitude, o rio Tocantins é o segundo maior rio que se encontra totalmente em território brasileiro – sendo o primeiro, o rio São Francisco. Neste 22 de março, Dia Mundial da Água, contamos o curso de um rio que nasce no Cerrado e vai banhar a Amazônia, o Tocantins.
Por Bibiana Garrido¹
Colaboração Dhemerson Conciani²
Com seus 2,6 mil quilômetros de extensão, o rio Tocantins corre pelos Estados de Goiás, Tocantins, Maranhão e Pará, além do Distrito Federal. Na altura do Bico do Papagaio, extremo-norte do Estado de Tocantins – região de transição entre os biomas Cerrado e Amazônia – une-se ao Araguaia para formar a principal bacia hidrográfica do Brasil e um dos maiores sistemas fluviais da América Latina: a bacia Tocantins-Araguaia. Como se selasse a conexão Cerrado-Amazônia, é na Ilha de Marajó, no norte do Estado do Pará, que encontra o rio Amazonas, até chegar à foz no Oceano Atlântico.
“O rio Tocantins sustenta há milhares de anos as atividades humanas em seu entorno. Por onde quer que passe, é historicamente responsável pelo abastecimento de água potável, provisão de recursos alimentares, agricultura irrigada e, nas últimas décadas, geração de energia hidrelétrica. Com nascentes no coração do Cerrado e foz na Amazônia, atua como um ‘corredor’ que conecta esses biomas, permitindo o fluxo gênico e favorecendo processos evolutivos de ganho de biodiversidade”, explica o pesquisador do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e do MapBiomas, Dhemerson Conciani.
Por onde leva suas águas, beneficia a população. De acordo com o Plano Estadual de Recursos Hídricos do Governo de Tocantins, são aproximadamente 3.600 rios ligados ao Tocantins. É ainda atrativo turístico e meio de transporte: na época de cheia, chega a ser a maior parte navegável, no trecho entre as cidades de Lajeado (TO) e Belém (PA). Também leva água para cerca de 2,5 milhões de pessoas, em 453 municípios, nos mais de 938 mil km² por onde se estende a bacia Tocantins-Araguaia no Cerrado e na Amazônia. Essa área equivale a duas vezes o tamanho do Paraguai ou a quase 11% do território brasileiro.
Uso da terra e da água
A região hidrográfica do Tocantins dentro do Cerrado compreende as bacias do rio Tocantins e, em parte, do rio Araguaia. Aproximadamente 373 mil km², ou 62,3% de sua área de vegetação nativa está conservada, enquanto que a área ocupada por atividades humanas é de 226 mil km², ou 37,7% da região. O tipo de vegetação predominante é a formação savânica, característica cerratense, com arbustos e árvores espaçadas, seguida por formações naturais não florestais – formações campestres e áreas úmidas – e por formações florestais, com árvores mais altas e em maior densidade.
Arquipélago do Tropeço, no rio Tocantins, é o 3° maior arquipélago fluvial do mundo, com 366 ilhas (Foto: Secretaria de Turismo/Governo de Tocantins)
Entre as ações humanas que alteram a cobertura de áreas nativas está o desmatamento. Juntas, as regiões hidrográficas do Tocantins e do São Francisco perderam 56,8%, ou 4.841 km², do total de 8.523 km² desmatados no Cerrado entre agosto de 2020 e julho de 2021. A bacia do Tocantins foi a mais afetada: concentrou 23% do total desmatado, ou 1.961 km², uma área maior que a capital do Maranhão, São Luís. De 1985 a 2020, segundo dados do MapBiomas, a região hidrográfica do Tocantins foi a que mais perdeu vegetação nativa. Foram 84 mil km², mesma área de São Félix do Xingu, no Pará.
A perda impacta a manutenção de recursos hídricos, uma vez que a vegetação nativa ajuda a abastecer os aquíferos e a rede de drenagem subterrânea, que alimenta os rios. Ao contrário de práticas da agricultura, como a monocultura, que consomem água e bloqueiam a infiltração no solo pelo manejo que o compacta, as raízes profundas do Cerrado são o que permite a circulação de água no bioma e o coloca em conexão com os demais biomas brasileiros.
“Podemos dizer que o abastecimento de água e a produção de alimentos no país está ameaçado enquanto o Cerrado estiver sob pressão da aceleração do desmatamento. Toda a vegetação nativa é atingida, inclusive aquela que está nas regiões hidrográficas que nascem no bioma e que são responsáveis pela distribuição hídrica em todo o território nacional. É pensando na qualidade e oferta de água, no ciclo da chuva e no equilíbrio térmico, também na proteção à sociobiodiversidade, que precisamos incentivar e colocar em prática modos de produção que mantenham o Cerrado de pé e, consequentemente, tudo o que está conectado a esse bioma central do Brasil”, diz a pesquisadora no IPAM e coordenadora científica no Mapbiomas, Julia Shimbo.
Somente no Cerrado, conforme o MapBiomas, a agricultura irrigada tem mais de 2,3 mil km² que dependem dos cursos d’água da região hidrográfica do Tocantins – um crescimento de mais de 20 vezes em comparação aos 107 km² de 1985 – sendo a captação hoje, em maior parte (1,3 mil km²), por uso de pivôs centrais. Também cresceram as áreas de pastagem da agropecuária, ocupando em 2020 cerca de 84 mil km², o equivalente à área de vegetação nativa perdida.
De um lado as usinas, de outro, os atingidos
Usinas hidrelétricas ocupam 38,2% da cobertura total de água da região hidrográfica do Tocantins, apontam dados do MapBiomas. Outros usos por atividades humanas, como barramentos para irrigação e consumo, estão em 16,1%. De 1985 a 2020, o ganho da cobertura de água por hidrelétricas na região foi o maior entre todas as regiões hidrográficas do Cerrado: 2,4 mil km², área maior que a da capital Palmas (TO) .
O potencial de geração de energia elétrica instalado na bacia Tocantins-Araguaia chega aos 11 mil megawatts, segundo a ANA (Agência Nacional de Águas), o que corresponde a 15,7% da potência instalada no Brasil. No rio Tocantins fica a usina hidrelétrica de Tucuruí, no Estado do Pará, entre as maiores do mundo em potência instalada – no Brasil, a segunda maior depois de Belo Monte, também no Pará.
Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará (Foto: Rui Faquini/Banco de imagens ANA)
Inaugurada em 1984, a usina de Tucuruí tem uma capacidade geradora de 8,3 mil megawatts e um reservatório de quase 3 mil km² no leito do rio Tocantins. É responsável pelo abastecimento de redes de energia nos Estados do Pará, Maranhão e Tocantins. A inundação para sua construção, no entanto, provocou problemas ambientais e atingiu populações tradicionais de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais e agricultores familiares.
Entre os danos relatados pelos atingidos, além dos impactos socioambientais da alteração no regime de uso e ocupação do território, da poluição, do desmatamento e da favelização, há os prejuízos à saúde física e mental, com acréscimo de violências e ameaças. Quase 40 anos depois da instalação de Tucuruí, a população teme pelo rompimento da barragem.
Berço das águas
O Cerrado é o bioma berço das águas do Brasil porque abriga nascentes de oito das 12 principais regiões hidrográficas do país: a Tocantins-Araguaia e as bacias do São Francisco, Paraná e Paraguai. Também têm nascentes importantes no Cerrado as bacias Amazônica, Parnaíba, e as do Atlântico Nordeste Ocidental e Leste. Uma pequena parte da bacia do Atlântico Sudeste poderia se inserir no grupo, com poucas nascentes no bioma.
Nascem no Cerrado 8 das 12 principais bacias hidrográficas do Brasil (Imagem: MapBiomas/Reprodução)
Parnaíba, Atlântico Nordeste e Leste são as bacias com maior cobertura de vegetação nativa conservada – 86,7%, 79,4% e 72,8%, respectivamente. Já as com menor cobertura nativa são Paraná (21,2%), Paraguai (46%) e São Francisco (55,5%). Somadas, as oito bacias perderam 260 mil km² de área de vegetação nativa de 1985 a 2020, de acordo com o MapBiomas. Em toda a extensão de água das bacias no Cerrado, há 7,6 mil km² ocupados por usinas hidrelétricas – matriz que é a principal fonte de energia elétrica no Brasil. É quase sete vezes a área da Baía de Todos os Santos, no Estado da Bahia.
A EPE (Empresa de Pesquisa Energética), que atua na prestação de serviços ao Ministério de Minas e Energia, indica, no Plano Nacional de Energia 2030, que 70% do potencial hidrelétrico ainda a aproveitar em território nacional está no Cerrado e na Amazônia. O texto do documento destaca que “pode-se antever grandes dificuldades para a expansão da oferta hidrelétrica. Dificuldades que são ampliadas por uma abordagem que se apoia em uma ótica ultrapassada, na qual projetos hidrelétricos, por provocarem impactos socioambientais, não podem constituir-se em elementos de integração e inclusão social, e também de preservação dos meios naturais.”
Depois da região hidrográfica do Tocantins, as que mais ganharam áreas ocupadas por hidrelétricas no Cerrado de 1985 a 2020, segundo o MapBiomas, foram as do Paraná, do Paraguai e do Atlântico Leste. A bacia do Paraná tem, ao todo, 73,1% de sua cobertura de água em hidrelétricas, e apenas 6,5% de cobertura de água natural. Na bacia do Paraguai, os números são 47,5% e 21,3%, respectivamente, e na do Atlântico Leste, 67,3% e 12,5%.
“O Cerrado tem uma importância central para abastecimento de alimentos, água e energia do país, mas para isso precisamos da sua cobertura nativa conservada”, completa Shimbo.
Novos dados na plataforma do MapBiomas Água
Participe do webinário “Explorando as conexões das águas superficiais e subterrâneas“, do MapBiomas Água, nesta terça (22) às 10h (horário de Brasília). No evento, serão lançados na Plataforma MapBiomas Água os novos dados de superfície de água do território brasileiro incluindo 2021, bem como seus números mensais, além de novas funcionalidades.
Sobre o MapBiomas
Iniciativa multi-institucional, que envolve universidades, ONGs e empresas de tecnologia, focada em monitorar as transformações na cobertura e no uso da terra no Brasil. Na rede MapBiomas, o IPAM é a instituição responsável pelo mapeamento da vegetação nativa do Ceerado. Esta plataforma é hoje a mais completa, atualizada e detalhada base de dados espaciais de uso da terra em um país disponível no mundo. Todos os dados, mapas, método e códigos do MapBiomas são disponibilizados de forma pública e gratuita no site da iniciativa: mapbiomas.org.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 23/03/2022
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