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O impacto do aquecimento global na produção de alimentos

Por Jennifer Ann Thomas

TERRA ARRASADA - Garimpo na selva do Amapá: a atividade ilegal agrava o problema da emissão de gases do efeito estufa (Daniel Beltrá/Greenpeace/Divulgação)

“Dada a causa, a natureza produz o efeito no modo mais breve em que ele pode ser produzido.” A máxima, de autoria do gênio italiano Leonardo da Vinci, que morreu há cinco séculos, caberia bem como epígrafe do novo relatório do IPCC, o órgão da ONU que trata de mudanças climáticas, divulgado na quinta-feira 8. Nele, mais de 100 cientistas de 52 nações fazem um alerta sobre os riscos à produção de alimentos representados pelo aquecimento global — a causa em questão que pode levar a natureza a produzir seus efeitos, danosos, no mais breve período possível. Ao tratar de alimentação, um aspecto pouco observado nas discussões sobre a elevação da temperatura terrestre, o documento do IPCC pode ser classificado — metafórica ou literalmente — como um autêntico soco no estômago.

O estudo foi produzido com o propósito de, mais uma vez, chamar atenção para as providências que têm de ser tomadas a fim de que se cumpram as metas fixadas pelo Acordo de Paris, definidas em 2015, que teve a adesão de 195 países. O tratado estabeleceu um limite de aumento de 1,5 grau na temperatura do planeta até 2100. Mas, para que isso aconteça, cada nação deve adotar medidas capazes de reduzir as emissões de gases do efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global. Para se ter uma ideia da gravidade do problema no que tange aos alimentos, a elevação de 1 grau na temperatura da Terra significará a redução de 7,4% na produção mundial de milho até o fim do século (leia o quadro). Diante disso, o relatório do IPCC lista as saí­das para evitar o pior. Para começar, será preciso conciliar as atividades agropecuárias que recorrem ao desmatamento com a perspectiva da necessidade de alimentar quase 10 bilhões de pessoas em pouco mais de três décadas (estima-se que essa será a população do globo em 2050). Ao mesmo tempo, as áreas de plantio terão de dividir espaço com a produção de biocombustíveis, como o etanol, para zerar de vez o uso de fósseis como fonte de energia. Em resumo, a forma de conservar e utilizar o solo precisará ser transformada radicalmente para evitar o aumento da temperatura no planeta.

CAMPANHA - Ativistas protestam em Berlim, diante da embaixada brasileira, em defesa da Amazônia: repercussão mundial (Gordon Welters/Greenpeace/Divulgação)

O relatório dividiu a discussão do problema em quatro pilares: a redução do desmatamento de florestas tropicais (para a pecuária e a mineração, por exemplo), como a Amazônia; a necessidade de investir em reflorestamento, visando à retenção de CO2 e à segurança hídrica; a produção sustentável de alimentos; e a adoção definitiva, e com urgência, dos biocombustíveis. Em seu documento, o IPCC costurou dados da literatura científica publicados até 2016 — a última data em que se consolidam informações sobre o assunto — e apontou as ameaças para a população de toda a Terra. O estudo não especificou as ações que devam ser adotadas em cada país. Os dados estão postos para que os governos definam o melhor modo de agir, de acordo com a sua realidade.

Segundo o IPCC, as atividades humanas têm algum tipo de impacto sobre mais de 70% da superfície terrestre — são as áreas onde as populações se estabeleceram para produzir comida e encontrar água doce, por exemplo. Cerca de 25% do solo é usado para cultivar alimentos e madeira e gerar energia, o que acaba aumentando em 23% os gases do efeito estufa. A terra é tanto causa como solução para o problema dessas emissões. O sequestro de dióxido de carbono da atmosfera ocorre durante a fotossíntese, na qual os vegetais tiram o CO2 do ar e expelem oxigênio. Por isso derrubar florestas para abrir lavouras e pastos reduz a área que auxilia no combate ao aumento da temperatura global. Há aproximadamente 1,4 bilhão de cabeças de gado em todo o mundo, responsáveis por nada menos que 40% da emissão anual de gás metano — que pode causar desequilíbrio no efeito estufa. Ou seja: os animais que alimentam a população também atacam o meio ambiente.

Para a diretora executiva da seção brasileira do World Resources Institute (WRI), instituição americana dedicada ao estudo do clima, Rachel Biderman, o relatório põe em xeque a segurança alimentar da humanidade — e o Brasil está diretamente ligado à questão. “O país é um dos maiores emissores de gases e está caminhando na direção contrária do que foi proposto em 2015, em Paris. O Brasil possui exemplos de produção sustentável, e temos de colaborar mais para resolver o desafio das mudanças climáticas”, afirmou ela.

NA DANÇA – O ministro Ricardo Salles (no centro), em visita a indígenas em Mato Grosso: polêmica sobre o desmatamento (Noaldo Santos/MAPA)

A controversa posição brasileira no que diz respeito ao meio ambiente tem um sinônimo: Jair Bolsonaro. Ainda quando candidato ao Planalto, ele deu a entender que poderia sair do Acordo de Paris, a exemplo do que fizera o presidente americano Donald Trump. Contudo, nem mesmo a ala ruralista apoiou os planos do então presidenciável, o que o levou, depois de eleito, a manter a Pasta dedicada à área e o compromisso climático assinado quatro anos atrás. Entretanto, os primeiros meses de seu governo foram repletos de decisões equivocadas no setor ambiental.

Na sexta-feira 2, o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, foi exonerado em consequência das críticas que fizera a Bolsonaro quando ele questionou os números da instituição sobre o desmatamento no Brasil — que revelaram um aumento de 68% na devastação da Floresta Amazônica na primeira quinzena de julho, em comparação com o mesmo período do ano anterior. O presidente considera que, nesse assunto, o Brasil é vítima de números mentirosos e tem de se defender do interesse internacional na Amazônia. Por sua vez, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, recomendou a criação de outro sistema de monitoramento do desmatamento. A revista científica Nature, uma das mais prestigiadas do planeta, citou o episódio do Inpe e defendeu a tese de que os cientistas não trabalham para a esquerda ou para a direita, e sim pela sobrevivência e pela prosperidade da própria humanidade.

O relatório do IPCC também chamou atenção para a emergência da transformação de certos comportamentos. Atualmente, algo entre 25% e 30% dos alimentos produzidos no mundo são desperdiçados. Mudanças nos padrões de consumo contribuíram para que cerca de 2 bilhões de adultos estejam obesos ou com sobrepeso, ao mesmo tempo que 821 milhões de pessoas estão subnutridas. Uma das recomendações do IPCC é adaptar a dieta. De acordo com o órgão, uma alimentação mais equilibrada, saudável e sustentável será essencial.

Segundo o físico brasileiro Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), que participou da elaboração do documento, a questão da produção de alimentos é crucial. “O setor da agricultura é responsável por 23% das emissões de gases do efeito estufa. Quando as populações com menor renda, como africanos e asiáticos, puderem consumir carne, a demanda vai aumentar. Precisamos encontrar o equilíbrio”, disse ele.

Desde o período pré-industrial — que vai de 1850 a 1900 — a temperatura nos continentes, onde a maior parte da população da Terra está concentrada, aumentou mais do que a média global. Em terra, os termômetros já ultrapassaram desde então o acréscimo de 1,5 grau, a previsão otimista estabelecida no Acordo de Paris. Quando se considera o planeta como um todo, a elevação da temperatura, no mesmo recorte temporal, foi de 1 grau. Durante a mais recente onda de calor na Europa, Paris atingiu o seu pico em 25 de julho, data em que os termômetros marcaram 41 graus e o governo francês declarou, pela segunda vez em menos de um mês, um alerta vermelho de calor — o nordeste do país estava com máximas previstas de 43 graus.

Ao mesmo tempo que o cenário internacional preocupa, há chance de reverter o caos que se desenha no horizonte. Todavia, para além do esforço político, será preciso investir muito em tecnologia. “Ainda não temos meios técnicos para reduzir a emissão de metano na produção de carne, por exemplo”, explicou Paulo Artaxo.

A ONU reconhece a relevância do papel de comunidades tradicionais e indígenas como aliadas no trabalho da conservação ambiental. No mundo, elas são responsáveis por manter em pé cerca de 40% de todas as áreas protegidas e mais de 65% das terras mais remotas e menos habitadas do planeta. Assim, a parceria entre ciência e tradição pode ser a chave para a contenção de uma resposta que a natureza, tendo como causa a humanidade, pode nos dar muito em breve.

Publicado em VEJA de 14 de agosto de 2019, edição nº 2647

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