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Terra Preta de Índio: o legado de agricultura sustentável da Amazônia

Um patrimônio milenar deixado no meio da floresta amazônica por povos que habitaram a região entre 2 e 8 mil anos atrás tem ajudado a garantir a sobrevivência de famílias ribeirinhas e a promover a preservação da biodiversidade por meio da agricultura sustentável. Seu nome é terra preta de índio, também conhecida como TPI.

A TPI é um solo de coloração escura, rico em cálcio, magnésio, zinco, manganês, fósforo e carbono. Sua composição proporciona grande fertilidade, atributo raro na região amazônica, onde os solos ácidos são desfavoráveis à agricultura.

Diferente do que se pensava até os anos 1990, a terra preta não é um fenômeno natural, mas fruto do trabalho coletivo do homem da Amazônia nos últimos 2 mil anos – ou mais. Sua descoberta é mais uma evidência a desafiar a ideia cultivada por décadas de que a Amazônia era uma região intocada, de poucos habitantes, antes da colonização europeia.

Pesquisas mostram que indígenas depositavam restos de materiais usados em suas comunidades, como pedaços de cerâmica, em locais específicos, que, decompostos por milhares de anos, transformaram-se na terra preta.

Sua composição oferece pistas sobre como o manejo da terra por populações milenares produziu terras férteis em um solo antes inóspito à agricultura sem uso dos modernos produtos químicos, ou queimadas — técnica típica da região, mas que contribui com o desmatamento.

“Podemos usar a lição da terra preta para melhorar a produção familiar nessas comunidades ribeirinhas da Amazônia”, diz o arqueólogo e doutor em Ciências do Ambiente Carlos Augusto Silva.

Ele explica que os sítios arqueológicos que contêm terra preta de índio revelam uma grande preocupação da população que habitou aquele local com a sustentabilidade e o impacto dos resíduos gerados por seus modos de vida.

“Ainda hoje as populações continuam fazendo isso em ações que certamente surtirão resultados dentro de mais alguns milhares de anos”.

Colheita em meio a fragmentos cerâmicos

O produtor rural Marcelo Cunha Nascimento, 44, convive coma terra preta desde a infância. O solo é um recurso para driblar o período da cheia dos rios, entre junho e julho. Todos os anos as águas barrentas do rio Amazonas engolfam suas plantações de couve, banana e macaxeira, na comunidade São Francisco Terra Nova, no interior do Amazonas, onde ele vive.

É nesta época que sua comunidade recorre à terra preta de índio, em uma área com um pouco mais de dois hectares que fica em uma parte mais elevada do território, uma das poucas a não ficar submersa. Com ela, plantam quiabo, maxixe e novas mudas de couve, que serão transplantadas para a várzea quando o rio baixar.

“Nesse período que não dá para plantar lá na várzea alagada a gente pega a canoa e vem para esta ilha plantar nesta terra, que é mais forte, não precisa adubar nem queimar. Aqui, além dessa terra preta, por todo lugar você encontra pedaços de cerâmica, pedras, carvão”, conta Nascimento.“Para nós isso são provas de que nossos antepassados viveram nesta terra e a prepararam para ser usada pelas futuras gerações”.

Produtor rural Marcelo Cunha Nascimento em sua canoa a caminho da area de roça da comunidade. Foto: Bruno Kelly.

Na área usada por Nascimento, os indícios encontrados por pesquisadores apontam para uma ocupação humana há cerca de 2,5 mil anos. Ali, a terra agricultável se tornou parte de um ecossistema, que ela ajuda a proteger.

“Os sítios arqueológicos que têm solo de terra preta são laboratórios a céu aberto que servem não só ao ser humano, mas a todos os animais e à biodiversidade. Aqui temos, por exemplo, um banco de sementes que alimenta também os animais”, explica Silva, o arqueólogo. “O sítio de terra preta de índio preservado, por si só, garante a sobrevivência daquele ecossistema local”.

Reserva de carbono

Sua origem antropogênica, feita pelo homem, também significa que a terra preta serve como um poderoso depósito de carbono, segundo explica Milton César Costa Campos, um cientista de solo da Universidade Federal do Amazonas.

Em média a terra preta consegue reter três a seis vezes mais carbono que outros tipos de solo, porque evoluiu para guardar carbono na forma de carvão – um resíduo depositado por populações antigas que não se deteriora tão facilmente quanto outras formas de carbono.

“Quando nós dominarmos a tecnologia de construção das terras pretas, podemos usar a ideia para incorporar no solo uma reserva de carbono”, ele explica.

Vista aérea de la roza de quiabo de la comunidad, hecha en Tierra Negra india. Foto: Bruno Kelly.

Campos explica que há pesquisadores investigando se é possível usar resíduos de serrarias para fazer terra preta, em vez de, por exemplo, fazer carvão vegetal, que poderia ser queimado. Este desenvolvimento poderia tornar um produto que emite carbono em um que o preserva. Além disso, a terra preta poderia ajudar a outros pequenos agricultores com solos mais férteis, que não requerem uso de agroquímicos.

No entanto, sua capacidade de guardar carbono implica cuidados. A terra preta não pode ser usada na agricultura intensiva (com cultivos como a soja), já que isso a levaria a emitir mais carbono do que outros solos.

Pesquisas ainda são necessárias

A legislação brasileira proíbe a comercialização, exploração e transporte da terra preta de índio, sob a justificativa de que ela é um patrimônio arqueológico que deve ser preservado.

Mas sua reprodução ainda é impossível, porque muito de sua origem continua a ser um mistério, segundo explica a arqueóloga Ângela Araújo, 43, que atua como pesquisadora voluntária no Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Ela conta que há diversas hipóteses sendo estudadas para a origem da TPI: ela poderia ser uma forma de adaptação a processos de cheias e secas de rios, o que restou de antigas plantações, ou mesmo o que sobrou de locais pensados para o descarte de resíduos.

“Há um universo de hipóteses que a arqueologia tem procurado estudar”, ela explica. “E o perfil de um solo é capaz de nos dar uma ideia do que pode ter ocorrido ali”.

Exposiçao do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Amazonas, onde a arqueóloga Ângela Araújo trabalha. Foto: Bruno Kelly.

Análises realizadas em laboratório, em parceria com botânicos e outros especialistas, revelaram, na composição da terra preta de índio, amostras de sementes carbonizadas, ossos de animais, como peixes e tartarugas, cascas de palmeiras, urina, material lítico, fragmentos cerâmicos – que ajudam a manter a umidade do solo – e até urnas funerárias, mas, até hoje, nenhum experimento conseguiu reproduzir as mesmas propriedades do material encontrado nas áreas de ocupações amazônicas pré-colombianas.

Futuro em perigo

Enquanto isso, as pesquisas sobre o patrimônio arqueológico que podem ajudar a redesenhar a história da ocupação humana na Amazônia esbarram na falta de recursos e dependem do trabalho de voluntários para realizar escavações, análises, identificações e chegar ao objetivo final da pesquisa científica, que é a exposição do conhecimento ao público, no Museu Amazônico, em Manaus.

Diretor do Museu Amazônico, Dysson Teles afirma que a falta de recursos para pesquisar e proteger a terra preta ameaça a própria existência do ecossistema ao seu redor. A proteção dos territórios onde elas estão localizadas é falha e há déficit de profissionais capacitados para atuar em estudos sobre o assunto.

“Um povo sem história é um povo sem memória. Isso explica a necessidade de se preservar o patrimônio histórico – patrimônio que, de certo modo, produziu essa sociedade”, diz Teles, diretor do Museu Amazônico.“À medida que eu tenho conhecimento que pertenço àquele meio, eu tenho condições de preservar, cada vez mais, aquilo ali para as futuras gerações”.

(#Envolverde)

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