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Saiba como pesquisadores “caçam” remédios na natureza

A pandemia de COVID-19 pegou o mundo de surpresa e desencadeou uma corrida em busca de remédios que possam conter o novo coronavírus. A aposta imediata está na cura de pessoas infectadas já que o processo de desenvolvimento de uma vacina deve levar no mínimo um ano, tempo demais diante de uma doença que mata 75 pessoas por hora no mundo.

Os cientistas não tiveram tempo hábil para chegar à conclusões seguras sobre o uso de medicamentos como a cloroquina, hidroxicloroquina, antiretrovirais e mais uma dezena de substâncias já disponíveis no mercado. Ainda assim, está nesses medicamentos comerciais a grande esperança de cura da COVID-19. “Porque para descobrir um fármaco novo é um processo que leva tempo e no momento atual a situação é de emergência”, conclui a doutora Vanderlan Bolzani, química da Unesp de Araraquara e uma das principais pesquisadoras do Brasil sobre o aproveitamento da biodiversidade para aplicações em fármacos.

A farmacêutica bioquímica Ilana Camargo testa potenciais medicamentos contra bactérias — Foto: Arquivo Pessoal

A farmacêutica bioquímica Ilana Camargo testa potenciais medicamentos contra bactérias — Foto: Arquivo Pessoal

Mas, afinal, por que esse processo é tão demorado? E como surge um novo medicamento? O caminho mais fácil é encontrar a receita na natureza, garante a doutora Vanderlan. Ao longo de milhões de anos de evolução, plantas, fungos, animais e todos os outros seres vivos desenvolveram remédios internos contra suas próprias doenças. O homem pode copiar a receita, multiplicar e distribuir em forma de medicamento. Dizendo assim parece até fácil, mas estamos falando de um longo e penoso processo onde há mais erros que acertos, mais dúvidas do que certezas.Por mais inteligente que o homem possa ser jamais idealizaria modelos tão sofisticados como os que a natureza faz— Vanderlan Bolzani, química

“Uma única família vegetal produz centenas de substâncias de estrutura molecular diferente, logo é o modelo mais fascinante que o homem já teve para explorar e produzir fármacos, cosméticos, suplementos alimentares e outras substâncias que favoreçam a qualidade de vida humana”, conclui a pesquisadora.

Veja o exemplo da Aspirina, um dos remédios mais consumidos no mundo: o princípio ativo do medicamento é o ácido acetilsalicílico, um derivado do ácido salicílico encontrado na casca do Salgueiro-chorão (Salix babylonica), árvore originária do Norte da China.

Veja alguns remédios que vieram da natureza — Foto: Fonte: João B. Calixto / Arte TG

Veja alguns remédios que vieram da natureza — Foto: Fonte: João B. Calixto / Arte TG

Há mais de dois mil anos o homem utiliza essa substância contra febre, dor e inflamações. O que a indústria fez foi melhorar a molécula no laboratório e produzir em grande escala em forma de comprimido. Na lista de moléculas copiadas da natureza também está a penicilina (antibiótico), morfina (analgésico), quinina (antimalárico), captopril (antihipertensivo) e mais algumas centenas de substâncias.

No interior de São Paulo o CIBFar, Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade de Fármacos, reúne cientistas do Laboratório de Física da USP de São Carlos, Institutos de Química da Unesp de Araraquara e Unicamp, Departamento de Química da UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos) e Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão Preto, com a missão de encontrar novas substâncias na natureza que possam combater doenças, especialmente as chamadas “doenças negligenciadas”, como a malária, que atingem populações pobres e não despertam muito interesse da indústria farmacêutica.

Veja quais são as etapas para a criação de um novo medicamento

Tudo começa com como uma aposta: uma folha, caule ou raiz de planta, por exemplo, que pode conter substância curativa. “Fazemos coleta de partes das plantas, ela chega fresca, nós secamos, depois de seca nós moemos e reduzimos à pó”, mostra Paulo Cezar Vieira, químico da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão Preto.

A segunda fase é verificar se a substância é capaz de combater algum micro-organismo. Isso é feito no LEMiMo, Laboratório de Epidemiologia e Biologia Molecular da USP de São Carlos que conta com um banco com mais de mil bactérias para testes.

“Os pesquisadores do CIBFar mandam as substâncias para o nosso laboratório e eu desafio essas bactérias com esses compostos. Aí eu consigo ver se aqueles compostos apresentam alguma atividade contra essas bactérias da coleção de cultura. Apresentando atividade eu vou para a ´bacterioteca´ do LEMiMo e pego as bactérias provenientes de hospitais que tem perfil de resistência alta ou são resistentes a múltiplos fármacos, algumas resistentes à quase todos os fármacos e testo os compostos novamente”, explica a farmacêutica bioquímica do LEMiMO Ilana Camargo.

Para criar um novo medicamento é necessário um alto investimento

Para criar um novo medicamento é necessário um alto investimento

Se a nova substância mata alguma bactéria a pesquisa prossegue. O passo seguinte é melhorar a molécula para que ela se torne mais barata e eficiente: “Matar a bactéria com uma concentração menor dessa molécula ou diminuir a toxicidade que a molécula pode ter para que ela possa avançar nesse processo de descoberta de novos fármacos”, comenta Ilana Camargo.

Para chegar ao mercado o novo medicamento ainda tem que passar pelo desenvolvimento pré-clínico, que inclui testes com animais ou células de animais, três fases de pesquisa clínica (em humanos) e só então o interessado pode pedir autorização à agência reguladora como a Anvisa ou o FDA (Estados Unidos) para fabricar e vender o remédio. Estima-se que para cada substância aprovada foram testadas outras 10 mil sem sucesso. Isso mesmo, 10 mil.Esse processo todo de avaliação demora de 10 a 15 anos e, além disso, é um processo muito caro, estima-se em torno de um bilhão de dólares, ou seja, 5 bilhões de reais desde o descobrimento até colocar esse fármaco no mercado— Ilana Carmargo, farmacêutica bioquímica

A força-tarefa de pesquisadores do interior de São Paulo já descobriu uma molécula da flor da Cássia (Senna espectabilis) capaz de combater o câncer e teve resultados promissores a partir da fruta do umbu e da casca do bacuri, duas frutas amazônicas.

Mas nenhuma dessas substâncias chegou ao mercado por conta do alto valor necessário para prosseguir com as pesquisas. “As pessoas acham que fazer um medicamento, isolar uma substância da natureza é um passe de mágica. Ciência não é mágica, é um processo custoso, demorado, fascinante mas responsável por todos avanços que conseguimos até hoje”, lembra a doutora Vanderlan Bolzani.

Químico fala de onde são extraídas algumas das fontes para criação do remédio

Químico fala de onde são extraídas algumas das fontes para criação do remédio

Agora imagine que apenas 10% da biodiversidade mundial foi estudada e mesmo entre o que já se conhece há pelo menos 140 mil moléculas de plantas e microrganismos isoladas e caracterizadas que ainda nem sequer foram avaliadas biologicamente. Enquanto se desdobram para testar uma a uma cada molécula já descoberta na natureza, os cientistas também correm para identificar substâncias de espécies raras antes que elas desapareçam por conta da poluição, desmatamento ou aquecimento global.

É o caso das espécies marinhas, foco da pesquisa do químico Roberto Berlinck, da USP de São Carlos. “A gente tem uma equipe de pesquisadores biólogos especialistas em biologia marinha e a gente vai pro mar, pega o material de mergulho, vai coletar os animais marinhos, as esponjas, ascídias, briozoários, moluscos e traz pro laboratório para investigar quais são as substâncias que tem nesses animais e se elas tem algum tipo de aplicação”, conta.

O químico Roberto Berlinck coleta invertebrados marinhos em busca de novas moléculas — Foto: Roberto Berlinck/Arquivo Pessoal

O químico Roberto Berlinck coleta invertebrados marinhos em busca de novas moléculas — Foto: Roberto Berlinck/Arquivo Pessoal

Roberto dá uma atenção especial a invertebrados com pouca ou nenhuma locomoção, que ficam parados no fundo do mar e não podem fugir dos predadores. “Eles têm duas opções (para se defender): ou desenvolver uma defesa física na forma de espículas, que parecem agulhas, ou desenvolver uma defesa química que atua quase como se fosse uma gerra biológica. Ou seja, o predador vai lá se alimentar dele só que ele tem a substância no tecido e (o predador) não vai comer porque a substância é tóxica e inibe o predador”, explica. A grande questão é que essas substâncias também podem prevenir doenças.”Existem várias substâncias de organismos marinhos que tem ação farmacológica comprovada contra diferentes tipos de câncer.”— Roberto Berlinck, químico

“Existe uma substância que tem uma atividade analgésica muito potente, que foi isolada de um molusco marinho e existem outras substâncias que tem atividade anti-inflamatória e tem também substâncias com atividade antiviral”, revela.

Espécies marinhas possuem substâncias analgésicas, anticancerígenas e antivirais — Foto: Henrique Fontes/USP

Espécies marinhas possuem substâncias analgésicas, anticancerígenas e antivirais — Foto: Henrique Fontes/USP

A busca incessante por novas moléculas hoje é resultado de uma lição que os cientistas aprenderam no século passado: “Entre as décadas de 40 e 60 houve muita descoberta de fármacos a partir de produtos naturais mas depois disso a pesquisa focou em síntese química, os pesquisadores pararam de buscar novos antibióticos na natureza dedicando-se apenas a modificar em laboratório moléculas que já conheciam. A consequência veio depois quando começaram a surgir bactérias com resistência a todos os fármacos que tínhamos em mãos e não tinha nenhuma molécula nova no mercado”, conta Ilana Camargo.

O hiato na busca por novas moléculas no passado forçou os pesquisadores a voltar a campo e copiar novas receitas da natureza assim como a falta de uma substância que contenha o novo coronavírus está desafiando os cientistas hoje. O caminho todos já conhecem: é longo, penoso, mas pode ser o único até a cura de uma doença. “A gente já sabe que esses micro-organismos que a gente consegue trazer pro laboratório e cultivar no laboratório é apenas 1% do que existe na natureza. Esses outros 99% que a gente ainda não consegue cultivar podem ser a fonte para novas moléculas”, conclui Ilana.

Por G1

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