Pesquisadores indígenas analisam impactos da crise climática no Rio Negro
A comunidade indígena de São Roque, no município de Barcelos (AM), fica às margens do Rio Caurés, afluente do Rio Negro, que é difícil de ser encontrado devido ao labirinto de ilhas e canais situados em sua foz, só identificada por quem conhece a região. Nos últimos seis anos, a paisagem nessa área e em outros rios do município está mudando. Grandes extensões de árvores queimadas — algumas com partes submersas — passaram a fazer parte do ambiente de rios como o Aracá, Demeni, Rio Preto, Quiuini, Padauiri, além do Caurés e do próprio Negro.
Esse cenário impactante é resultado de eventos climáticos extremos ocorridos nos últimos anos. Em 2016, uma grande seca causou incêndio em áreas de igapós (floresta inundada), que secaram. Sobrou um rastro de troncos queimados. Já em 2021 e 2022, foram registradas duas cheias recordes consecutivas, deixando muitas áreas submersas.
Conhecedores relatam prejuízos para as roças e a floresta e percebem a perda de algumas espécies de árvores. Há risco de insegurança alimentar, pois os moradores da região dependem da produção das roças, da caça e da pesca,que sofreram com as alterações climáticas.
Os eventos extremos e seus efeitos para as famílias que vivem em comunidades do município estão sendo acompanhados pela Rede de Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas), que atua no Médio Rio Negro. Entre os dias 29 de agosto e 2 de setembro, a comunidade de São Roque recebeu a III Oficina dos Aimas de Barcelos, com troca de experiência entre os participantes e expedições aos locais atingidos.
Durante o encontro, o conhecedor e pesquisador indígena Clarindo Chagas Campos, do povo Tariano, foi escolhido como coordenador dos pesquisadores indígenas em Barcelos.
O projeto é desenvolvido em conjunto pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e reúne, no total, cerca de 50 Aimas que atuam no Médio Rio Negro e no Alto Rio Negro, nas regiões dos rios Tiquié, Uaupés, Içana (veja o mapa). Em Barcelos, o projeto conta com o apoio da Associação Indígena de Barcelos (Asiba). Imagem
Durante as expedições, os Aimas e conhecedores da região indicaram pontos de queimadas e, ainda, onde a vegetação ajudou a segurar as chamas, como nas áreas de mologonzais – com concentração de molongós pretos. Também explicaram que o fogo só diminuía após alcançar a floresta em terra firme, fora das áreas de igapós. É possível ver os restos das árvores queimadas, com parte dentro d’água e, nelas, as marcas da cheia recorde, uma vez que o nível do rio já está mais baixo.
O agricultor Pedro Raimundo Fernandes, do povo Baré, foi criado na região do Caurés e vive em São Roque. Ele é um entusiasta da pesquisa e colaborador do jovem Aima local, Ezequias Pereira, também do povo Baré, e faz anotações diárias das observações dos eventos ambientais. Ele participou da oficina e das expedições, relatando o impacto dos incêndios e das cheias não só para as roças, mas também para a floresta.
“A floresta onde não estava acostumada a ir para o fundo, entrar n’água, elas (as árvores) morreram. Com a enchente do ano passado, até o nível que ela chegou, morreram muitas árvores e muitas palmeiras também. Eu não sei explicar. Essa enchente deste ano para nós foi maior. Talvez ela tenha feito um dano também, só que nós ainda não procuramos andar para ver o que aconteceu”, disse Seu Pedro durante a expedição, em meio à área atingida tanto por queimadas quanto por enchentes.
Sobre o incêndio, ele destacou a gravidade da situação. “Foi uma grande seca que tivemos aqui na região do Rio Negro e causou devastação na floresta aquática (igapós). Estou com 62 anos e me criei nesse Rio Caurés. Nunca tinha visto uma enchente dessa e nem uma seca do ano que aqui pegou fogo, nunca tinha visto”, lamentou.
A percepção de Seu Pedro pode ser comprovada por dados. A plataforma Global Forest Watch (GFW), que fornece ferramentas para o monitoramento de florestas, indica que de 2001 a 2021 Barcelos perdeu 130 mil hectares de cobertura arbórea por queimadas e 20,7 mil hectares devido a todos os outros fatores. O ano com a maior perda de cobertura arbórea devido a queimadas durante o período citado acima foi 2016, com 104 mil hectares perdidos por queimadas.
Outro dado que mostra a intensidade do problema indica que os focos de incêndio em 2015 foram 196 e, em 2016, passaram para 14.321, conforme o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A alta entre um ano e outro foi de 7.200%.
No outro extremo, o Amazonas passou por uma cheia recorde em 2021, com o nível do Rio Negro atingindo 30,02m em Manaus, o maior índice desde o início da medição, em 1902. Este ano, a cheia na capital não ultrapassou o período anterior, mas ainda assim a enchente foi extrema.
No município de Barcelos foram duas cheias recordes seguidas no Rio Negro: em 2021, o nível chegou a 10,46m, sendo o recorde até então. Em 2022, a água ultrapassou essa marca, chegando a 10,52m, segundo dados do Serviço Geológico do Brasil – CPMR.
Na comunidade de Cauburis, no Rio Negro, os moradores marcaram na escada de acesso o nível da água na cheia de 2021 e observaram que, em 2022, o nível foi além. O Aima Rodrigo da Silva Gomes, do povo Baré, que vive em Cauburis, disse que os espaços para fazer roça na comunidade já estão ficando difíceis devido aos eventos climáticos e pressão por terra.
“Foi enchente grande sim. A gente já está se acostumando com enchente grande. Por aqui a gente fala assim que dá para matar macaco de cacete. Porque o rio sobe e quem está nas embarcações dá de acertar os macacos que ficam no alto das árvores. Clima, tempo, enchentes, muita coisa não regula mais”, relatou.
A comunidade também passou pelos impactos do incêndio, mas Rodrigo não estava lá na época. Ele estava trabalhando em áreas de piaçabais — um dos recursos naturais da região, ampla e historicamente explorado —, onde via cinzas caindo do céu.
O Aima Ezequias Pereira, que mora em São Roque, lembra a agonia na época dos incêndios. “A gente não respirava o ar natural por causa da fumaça. O céu escurecia mais cedo, o sol ficava avermelhado”. Nascido na comunidade de Manapana, que significa “borboleta”, em Barcelos, o Aima Ezequias foi criado em São Roque. Foi ele quem conduziu o barco, que saiu de Barcelos com o grupo de pesquisadores indígenas, quando a embarcação entrou no Rio Caurés, atravessando as ressacas à noite, guiando-se por seus conhecimentos e pela lua nova.
Também morador da comunidade de São Roque e conhecedor da região, o Agente Indígena de Saúde (AIS) Ely Gomes Pereira, do povo Baré, pai de Ezequias, fala dos impactos de outro extremo climático: as enchentes. Ele chegou a se mudar com a família para o barco durante as inundações de 2022. “Nunca tinha morado em barco antes”, disse ele, que passou cerca de 2,5 meses na embarcação.
“O que eu vi da enchente é que era só um mar de água. Houve diminuição dos peixes, que acharam muito espaço. Caçar ficou mais difícil. Era preciso mais de seis horas remando para alcançar a terra e encontrar a caça. O barco foi meu abrigo, meu socorro.”
A casa de forno comunitária de São Roque também ficou cheia de água. “Eu olhava para o rio subindo e só pedia para secar de volta, que não enchesse muito”, afirmou Iranilda Sales Santana, esposa de Ely. O agente de saúde fala sobre a cheia, mas ainda guarda na memória os incêndios de 2016. “Foi um desespero. Para onde a gente ia, tinha fogo. As chamas chegaram muito perto das casas. O fogo durou cerca de um mês, mas a agonia continuou por cerca de três meses devido à fumaça”, lembrou.
Relatos semelhantes a esse foram coletados pelos Aimas em questionários aplicados nas comunidades. O pesquisador indígena e liderança Francisco Saldanha da Silva, do povo Baré, da comunidade Bacabal, Rio Demeni, também fala sobre a sua experiência à época. “O fogo chegou bem perto da comunidade. Ficamos agoniados com a fumaça. A gente tentava fechar a casa para evitar a fumaça, mas não dava. E tinha muito carapanã (pernilongo). Algumas vezes fomos dormir na praia, onde era mais fresco”, relatou.
Nas comunidades cercadas pelo fogo, os homens costumavam sair à noite para tentar conter as chamas, mas as ações não eram suficientes para conter os focos, que avançavam tanto pelas árvores, como debaixo da terra, na camada chamada de “bucha”, formada pelas folhas caídas.
Mais pesquisa
Renata Alves, ecóloga e analista de geoprocessamento do ISA, explica que, a partir da ocorrência dos incêndios, foi proposto aos Aimas como tema da pesquisa os impactos do fogo. Enquanto o estudo estava em andamento, veio o extremo das enchentes. Os dois eventos estão sendo acompanhados pelos pesquisadores indígenas, que anotam em diários suas observações e ainda fazem registros com tablets e celulares.
Ela conduziu a oficina dos Aimas em São Roque e explicou que as observações e anotações feitas pelos pesquisadores indígenas até agora apontam para uma maior imprevisibilidade dos eventos climáticos, o que está levando a uma mudança no manejo das roças e da floresta.
“Os cuidados até então tomados durante a queima de roça ou nas fogueiras dos acampamentos não foram suficientes para evitar o incêndio de 2016. Novos cuidados passaram a ser tomados”, contou.
Os resultados parciais das pesquisas feitas pelos Aimas sobre os incêndios e enchentes entre 2016 e 2021, por meio de questionários aplicados aos moradores das comunidades, indicam que a maioria das pessoas (61%) mudou a forma como maneja o fogo para queimar a roça após os grandes incêndios de 2016. Também foram relatados impactos principalmente nas roças, mas também na pesca e na caça.
Roças
No Médio Rio Negro, a população indígena está organizada em associações como a Asiba e vem lutando por seus direitos, pelo reconhecimento do território tradicionalmente ocupado e por uma proposta participativa do ordenamento territorial.
Presidente da Asiba, Rosilene Menez da Silva, do povo Baré, participou da oficina em São Roque e explicou que a associação vem acompanhando os impactos dos eventos climáticos extremos. “A gente vê muita gente cultivando a roça de jeito tradicional. É um trabalho de muito tempo para derrubar, roçar, preparar o solo. Se o clima não ajuda, como essas pessoas vão tirar o sustento?”, questionou.
Mesmo quem não teve a roça atingida diretamente por queimadas ou enchentes relata que os eventos extremos estão impactando a produção tradicional, reduzindo a segurança alimentar. Um dos efeitos relatados é que com as manivas (mandiocas), principal alimento da região, estão “cozinhando” antes da colheita devido à terra ficar encharcada e sob forte temperatura, provocando um efeito que os indígenas estão chamando de isopor: o alimento acaba ficando muito mole, o que não é bom para a produção de farinha e outros produtos como o beiju e a tapioca.
Maria Yrinéia Basílio Brazão, moradora de Canafé, uma das Aimas mulheres da região de Barcelos, conta que para chegar à sua roça passou a ter que enfrentar um chavascal na área que sofreu com o excesso de chuva. Agora mudou o lugar de fazer o plantio para evitar esse trecho.
O relato dela é que a roça não foi inundada, mas muita mandioca se perdeu com a umidade e, logo em seguida, com o excesso de calor. “Está mais difícil fazer roça, tem que ir mais longe. Eu mudei minha roça para fugir o caminho difícil”, disse.
Além disso, há mais dificuldade de planejar o plantio, devido à falta de previsibilidade do período de seca e enchente. Pelo sistema tradicional, as roças são plantadas em áreas de floresta primária ou secundária, que são derrubadas, deixadas para secar e depois queimadas para, em seguida, ser feito o plantio. Por esse processo são primordiais os verões – períodos sem chuva.
Coordenador dos Aimas em Barcelos, Clarindo Chagas Campos, do povo Tariano, explica que os conhecimentos indígenas indicam que a natureza tem conexões com as constelações e essas ligações estão sendo rompidas com o abuso do ambiente provocado pelo homem. “É a invasão da casa dos espíritos da natureza, que ficam incomodados e começam a limpar. Estão vivos e reclamando”, avisou.
Em seu sítio, no lago Cunimaru, em Barcelos, ele acompanhou a cheia e fez marcações do nível do rio, observando que a enchente de 2022 atingiu 25cm a mais que a cheia de 2021. “O nosso conhecimento não tem mais valor. A lagartixa e o caracol, que são marcadores de cheias e nossos comunicadores, já não acertam mais”, lamentou.
Segundo ele, as lagartixas costumam subir até certo ponto de alguns troncos, marcando que o nível do rio chegará até essa altura. Já os caracóis colocam seus ovos no nível máximo a ser atingido pela água. “Não erravam nunca. Agora não acertam mais. A esperança de vida está em risco. Quem vive da natureza está apreensivo, preocupado.”
Comunidade São Roque
Na comunidade de São Roque, às margens do Caurés, vivem 20 famílias das etnias Baré, Baniwa e Macuxi. Na frente de cada residência, um canteiro de temperos, um dos itens do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (SAT-RN), mostrando que as roças tradicionais indígenas estão vivas por lá.
A caça e a pesca são fartas, sendo servidas durante os dias de oficina junto com produtos da roça e da floresta, como farinha e patauá. As mulheres também produzem os fogareiros de barro, muito utilizados em todo o Rio Negro. Outras atividades são a caieira para produção artesanal de carvão.
Na região, há turismo de pesca, uma das principais atividades econômicas de Barcelos, e parte dos comunitários trabalha como pilotos e práticos dos barcos turísticos. Um acordo feito entre comunidade e empresa de turismo prevê fornecimento de internet – disponível algumas horas por dia – e água encanada. Uma das famílias também mantém um estaleiro.
A agricultora Maria Teresa Sales Lopes, do povo Baré, nasceu e sempre viveu em São Roque, mostrou as roças que ela e sua família mantêm na comunidade, conservando o sistema tradicional. Ela passou pelo incêndio e pelas enchentes e mostra resiliência. “Continuamos plantando roça”, ressaltou.
Depoimento
Durante a II Oficina dos Aimas de Barcelos, na comunidade de São Roque, o grupo fez uma expedição às áreas que sofreram com incêndio e inundação. No local, o agricultor Pedro Raimundo Fernandes, do povo Baré, deu o depoimento abaixo:
Esse incêndio foi muito grave, foi uma grande seca que tivemos aqui na região do Rio Negro e causou devastação na floresta aquática. Mas nós acreditamos que isso vai ser reflorestado de novo depois de muitos anos.
Logo que foi queimado, era difícil encontrar peixe. Mas agora já tem, porque já tem muitos matos que foram reflorestados e dão oportunidade dos peixes se alimentarem, mas a gente não vê, pois estão no fundo.
E essa queimada esfumaçou muito. Era muita fumaça por toda parte. O povo que andava nos recreios (barcos grandes de passageiros e carga) reclamava que era muita fumaça para eles dirigirem a embarcação. Foram queimadas graves que fizeram e vêm trazendo muito prejuízo à floresta e ao ambiente.
Depois disso, a cheia causou muito prejuízo também. Aqui foram poucas pessoas que tiveram as roças tomadas por parte da água, mas a floresta onde não estava acostumada a ir para o fundo, entrar n’água, as árvores morreram.
Andei no mato mostrando sorva (uma espécie de árvore) na água, onde nunca tinha entrado na água. Com a enchente do ano passado, até o nível que ela chegou, morreram muitas árvores e muitas palmeiras também. Eu não sei explicar a razão.
Essa enchente (de 2022) para nós foi maior. Talvez ela tenha feito o mesmo dano da outra, de matar outra parte da floresta, mas ainda não fomos andar, ver, conhecer. Talvez ela tenha feito um dano também, só que nós ainda não procuramos andar para ver o que aconteceu.
Essa área aqui (atualmente inundada) fica toda terra seca, não fica água, essa área aqui pegou fogo porque fica muito seca e o fogo se alastrou. Aí veio queimando os paus, as madeiras secas e aquela bucha vem queimando por cima e por baixo da terra, digamos assim.
A roça está ficando um pouco mais difícil porque as terras primárias estão ficando mais distantes, cada ano mais distante. Aí fica ruim o acesso de transporte para a gente conduzir mandioca, banana, cana e outras plantas. E a gente carrega nas costas e fica muito distante e aí é o passo da gente ocupar as terras secundárias que são as capoeiras que sempre estão mais próximas.
Em relação à pescaria, logo que foi queimado aqui, ficou um pouco ruim, mas agora está melhorando. Mas quando o rio enche muito, a pescaria é só no igarapé. Aí tem que fazer umas remadas prolongadas de três a quatro horas para chegar ao ponto que a pessoa começa a pescar. Para ir e regressar no mesmo dia fica difícil, porque a pessoa rema muito e lá pesca pouco.
No verão fica mais fácil da gente pescar porque pega tucunaré e piranha em toda parte do rio. No inverno fica mais difícil, quando os igapós ficam com profundidade elevada.
Estou com 62 anos e me criei nesse Rio Caurés. Nunca tinha visto uma enchente dessa e nem uma seca do ano que aqui pegou fogo, nunca tinha visto. Em 1975, teve uma cheia, mas não foi como essas duas dos anos passados.
E não secou tudo entre um ano e outro. Secou um pouco só, mas não chegou ao nível que antigamente a seca chegava. Quando o rio já começa a encher em março e já deram os repiquetes e a água não desceu mais. A enchente já pegou o rio um pouco cheio aí foi o passo de a enchente ter sido grande. Aí encheu na época que era para encher, mas só que as águas já estavam muito em cima e aí foi longe.
A enchente foi longa mesmo. E só parou na época que esses anos para mesmo, em junho. Esse ano encheu até o dia 23 de junho.
Por Instituo Socioambiental
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