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Os Wauja e o domínio do saber ceramista

Povo do Xingu assume o protagonismo da preservação do seu patrimônio cultural e artístico, cria o primeiro museu indígena em aldeia e pressiona Iphan para reabrir processo de tombamento da gruta de Kamukuwaká.

Duas semanas antes da descoberta do ocorrido na gruta de Kamukuwaká, outra tragédia se abatia sobre o povo Wauja: o incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. A perda etnográfica e histórica provocada pelo fogaréu foi incalculável, tendo destruído 400 peças de cerâmica Wauja, coletadas entre os anos de 1884 e 1978 – peças que haviam sido recolhidas antes da epidemia de Sarampo, nos anos 1950, que praticamente dizimou aquele povo.

Reconhecidos internacionalmente pela singularidade da cerâmica, do grafismo, da arte plumária e das máscaras rituais, os Wauja decidiram assumir o protagonismo da preservação do seu patrimônio cultural e artístico. Cientes de que o não registro da memória é o primeiro passo para aniquilar um povo, os Wauja criaram o Museu Indígena Ulupuwene (MIU, como passou a ser carinhosamente chamado pelos indígenas).

O tombamento do Iphan foi feito em um ponto específico, onde está a gruta de Kamukuwaká, quando o correto teria sido incluir todo o complexo arqueológico cultural. São lugares com um importante patrimônio imaterial associado

Instalado na aldeia Ulupuwene, o MIU, que abriga a réplica em 3D da Gruta de Kamukuwaká, é o primeiro museu indígena em aldeia e o terceiro inaugurado na Amazônia brasileira. Os dois outros são em áreas urbanas. O primeiro deles foi o Magüta dos Tikuna, que levou cinco anos para ficar pronto (1985-1990). Em seguida, veio o Kuaki, no Oiapoque (1998-2001), no Amapá, que é um espaço cultural multiétnico de quatro etnias: Karipuna, Palikur, Galibi Marworno e Galibi Kalinã.

Instalado no recém-inaugurado Centro Cultural e de Monitoramento Territorial, o MIU um projeto de 150 metros quadrados que seguiu os princípios de arquitetura sustentável e utilizou os conceitos da bioconstrução — sua construção foi feita pelos próprios indígenas. Equipado com painéis solares, conexão de Internet, drones, câmeras e GPS, o centro, além de exibir os objetos de arte dos Wauja, permitirá o monitoramento do Território Indígena Batovi 24 horas por dia, sete dias por semana – uma vigilância permanente para monitorar os limites do Parque Indígena do Xingu.

Dedicado a estudar aspectos e costumes do seu povo, o antropólogo Autaki Waurá,  é, além de professor na comunidade, um dos coordenadores do MIU. Atualmente, ele está no fazendo Doutorado em Antropologia Social na Unicamp. “Quero diagnosticar, preservar e divulgar a cultura do meu povo”, conta.

O MIU nasceu inspirado no conceito de Ecomuseu, o que significa que foi liderado pela própria comunidade. “Um museu é, antes de tudo, os modos de pensar e praticar a preservação dos patrimônios e memórias, e não um edifício”, define o antropólogo e museólogo Aristóteles Barcelos Neto, que em uma live com Autaki falou sobre o MIU. Ele faz parte do conselho curador do museu e é um estudioso da cerâmica Wauja desde os anos de 1990. Além dele, foram empossados no conselho, em maio último, indígenas, como Autaki, Piratá Waurá e Hukai Waurá, e antropólogos.

Além dos objetos que serão expostos no MIU, os Wauja têm interesse semelhante ao dos Karajás, que mapearam mundo afora instituições que tenham no seu acervo bonecas feitas pelo seu povo. “Os Wauja querem saber quais os itens da sua arte que estão fora da aldeia”, comentou Neto, na live, sobre o interesse desse povo de salvaguardar o seu patrimônio.

A gruta de Kamukuwaká tem duas proteções e nenhuma dessas duas leis estão dando conta, de fato, de protegê-la. É, por isso, que os xinguanos estão reivindicando, para além do tombamento, essa demarcação do território.

Os Wauja querem também corrigir os erros de documentação nos museus mundo afora. Há erros bem sérios, segundo enumerou Neto na live que participou com Autaki para falar sobre o MIU. Panelas coletadas em 1898 pelo etnólogo alemão Hermann Meyer, teriam sido identificadas de forma errada. A coleção está no Museu de Dresden, na Alemanha, e as peças são descritas como tendo sido coletadas entre os Kamaiurá.

Isso não significa que essas peças serão retiradas desses museus mundo afora para serem exibidas no MIU. Assim como foi feito com a gruta de Kamukuwaká, a intenção é produzir réplicas desses objetos, dado que o risco de perda é enorme. Recentemente, um raio caiu na aldeia Ulupuwene e destruiu algumas casas, inclusive a de Autaki.

Além dos objetos que serão expostos no MIU, os Wauja querem dar protagonismos aos artistas por trás de cada uma das peças. “Eles querem contar a história dos objetos, a partir da biografia dos seus criadores e usuários originais”, comentou Neto, nessa mesma live.

Corredor ecológico cultural

Além de assumir o protagonismo da preservação do seu próprio patrimônio cultural e artístico, os Wauja estão pressionando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para reabrir o processo de tombamento da gruta de Kamukuwaká. Os Wauja querem ainda rever os limites da Terra Indígena Batovi, para que seja adicionado ao território todo o complexo arqueológico cultural onde se insere a gruta sagrada — isso significa ampliar o tombamento ao longo do rio Batovi, incluindo espaços vulneráveis como a Pedra da Anta, que, na tradição dos povos originários, é uma anta que virou rocha.

“O tombamento do Iphan foi feito em um ponto específico, onde está a gruta de Kamukuwaká, quando o correto teria sido incluir todo o complexo arqueológico cultural. São lugares com um importante patrimônio imaterial associado”, comenta Mariel Nakano, economista e assessoria do Instituto Socioambiental (ISA). Ela acrescenta que os Wauja e Associação Terra Indígena Xingu (Atix) estão reivindicando a criação d e um Corredor Ecológico Cultural, que visa mapear os lugares sagrados ao longo do curso do rio Batovi: “A criação desse corredor ecológico cultural é o instrumento que vai dar conta de realmente preservar o patrimônio dos Wauja”. Essa é, segunda ela, a alternativa mais assertiva e não ficar tombando os lugares sagrados separadamente”.

“A gruta de Kamukuwaká tem duas proteções e nenhuma dessas duas leis estão dando conta, de fato, de protegê-la. É, por isso, que os xinguanos estão reivindicando, para além do tombamento, essa demarcação do território”, explica a arqueóloga Gabriele Viega, do Instituto Homem Brasileiro (IHB). Até hoje, a gruta de Kamukuwaká sequer recebeu uma placa do Iphan sinalizando que a caverna foi reconhecida como patrimônio cultural. E o pior: “Não houve sequer uma reparação por parte do Iphan, já que o órgão falhou na sua obrigação de proteger um patrimônio tombado”, conclui a arqueóloga.

O novo superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Fernando Medeiros, vem acompanhando as discussões sobre o Corredor Ecológico Cultural desde 2023, antes mesmo de tomar posse no novo cargo. Na véspera da inauguração da réplica em 3D da gruta de Kamukuwaká (3 de outubro), ele esteve no Território Indígena Batovi e fez uma inspeção a gruta original.

“A pesca predatória já virou um problema para os próprios fazendeiros, que não estão mais interessados que a atividade continue ocorrendo”, comentou, acrescentando que medidas de restrição para o acesso desses pescadores já foram tomadas. “O problema é que essas restrições vêm atingindo e dificultando ainda mais o ir e vir dos povos indígenas a gruta original”.

Apesar de gravidade do problema e do fato do tombamento não ter sido suficiente para proteger a gruta sagrada, Medeiros deixou claro que não tomará nenhuma medida drástica sem anuência dos povos xinguanos e da Atix. “Os próprios representantes da entidade deixaram claro que não querem, nesse primeiro momento, o confronto”.

Por Colabora

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