Estocar vento existe, mas e plantar água? Plano ajudará em crise hídrica
Ao discursar nas Nações Unidas em 2015, a ex-presidente Dilma Rousseff virou meme ao usar uma metáfora para sugerir que se estocasse vento para tornar a energia eólica mais barata. Se a expressão “estocar vento” causa espanto, e se falássemos então em “plantar água”? Pois já existem iniciativas do tipo no Brasil e em diversas partes do mundo.
Conforme as mudanças climáticas avançam e geram secas mais severas, a saída de plantar água tem crescido e envolve estratégias para manter solos úmidos nos períodos com menos chuva. Assim, garantem que a produção agrícola se mantenha de forma sustentável.
“De onde vem a água? Do ciclo. Ela não mora na terra, ela mora no ciclo”, resume o agricultor Newton Campos, para quem a escassez hídrica não deveria existir. Ele é o fundador da Plant’água, uma associação de plantadores de água. Isso quer dizer que eles têm o trabalho de, como diz Campos, “segurar a chuva” em suas propriedades.
Como planta água?
1. Uso de lonas
O processo ocorre de diversas maneiras. A Plant’água desenvolveu, por exemplo, o “Caça-Chuva”, um sistema para reaproveitar a água pluvial: ela cai sobre lonas, que não deixam que escorra rapidamente sobre o solo, levando-a por canos para grotas (cavidades), onde então reabastecem aos pouquinhos o lençol freático. Isso garante um solo úmido por mais tempo, segundo Campos.
2. Caixas coletoras
Outra técnica utilizada são as “caixas secas”, buracos cavados em locais estratégicos para armazenar a água pluvial. À medida que a água se acumula nessas caixas, ela vai se infiltrando no solo devagar, por meio do processo conhecido como percolação. Ou seja, também é uma maneira de impedir que a enxurrada passe rapidamente por essa terra, sem ser absorvida direito.
Cada propriedade rural, com suas características físicas próprias, exige um tipo de “plantação de água”. As técnicas consistem em pequenas obras de engenharia e correção de topografia, de fácil realização, mas que fazem diferença para evitar a erosão do solo e não desperdiçar água pluvial. Isso é o que quer dizer “segurar a chuva”, explica o fundador da associação.
“A nascente [de um rio] não nasce, ela vaza do lençol freático. Se o lençol estiver vazio, essa nascente seca”, explica Campos. “Aí é que entra o nosso trabalho.”
O agricultor afirma que essas ações, que chama de “contenções hídricas”, precisam ser expandidas, feitas por mais trabalhadores rurais justamente para recuperar áreas degradadas e evitar a escassez hídrica — o que impacta, entre outras coisas, na produção de alimentos.
A Plant’água foi fundada em 2015, após um projeto de trabalho coletivo entre agricultores da Serra do Caparaó, na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo. Com a associação formada, de acordo com Campos, é mais fácil levar a discussão sobre o plantio de água para órgãos e autoridades, como os conselhos de meio ambiente.
“A mudança climática vai bater muito nisso aí: num momento, muita água e, no outro, sem água. No momento das tempestades, precisamos segurar a água nas cabeceiras, nos morros, nas montanhas, para que essa água desça devagarinho, na entressafra de chuvas.”
Técnicas milenares
O trabalho na agricultura de Newton Campos na região vem desde os anos 1980, quando começou a trabalhar na sua própria terra, em Alegre (ES). Mas a ideia de “plantar água” é muito mais antiga, executada há milênios por diferentes civilizações espalhadas pelo planeta.
“Os incas nos Andes já faziam isso”, afirma Campos. “Eu diria que Machu Picchu já tinha suas técnicas de plantio de água.”
A cidadela, cujos vestígios hoje se encontram no atual território do Peru, tinha suas próprias obras engenhosas para o abastecimento hídrico. Como a região recebia muita chuva, os incas concluíram que Macchu Pichu não necessitava de irrigação.
Em vez disso, a cidadela tinha vários patamares construídos num terreno em declive, o que fazia com que a água pluvial descesse devagar e fosse drenada pelo solo. Além disso, os patamares receberam camadas de cascalho e areia, que também “seguravam a chuva” no solo.
Desafios na Índia
Outro continente em que diversas dessas técnicas eram aplicadas há séculos é a Ásia, em especial na Índia. Com a colonização britânica no século 19, o plantio de água foi colocado em segundo plano. Contudo, isso tem mudado.
O motivo é resolver um grande desafio: com uma população que é quase o dobro de toda a Europa (1,3 bilhão de indianos contra 748 milhões de europeus), os indianos possuem cerca de um terço de todo o território europeu. Dessa forma, é preciso que suas áreas agrícolas estejam sempre abastecidas com água para alimentar tanta gente num espaço tão contido.
Por isso, nas últimas décadas, técnicas de plantio de água foram recuperadas e voltaram a ser populares no país. Aplicá-las é o trabalho de gente como Ayyapa Masagi, considerado o “mágico da água” na Índia, criador da Water Literacy Foundation (que se traduz como “fundação para a alfabetização sobre a água”).
Masagi trabalhou por 23 anos numa grande empresa do ramo de construção da Índia, ganhando experiência na área de engenharia. Deixou seu emprego em 2002 para focar em técnicas de conservação de água.
“Na minha infância, vi minha mãe se esforçar muito para conseguir água, nós tínhamos que acordar às 3 da manhã e andar por horas para buscar um pouco de água para o dia. Decidi que, quando tivesse terminado meus estudos e dado conforto à minha família, deixaria qualquer trabalho e qualquer salário para atuar na área social e buscar soluções para a crise hídrica”, explica ele por email a Tilt.
Os métodos de atuação de Ayyapa Masagi não são tão diferentes daqueles usados pela Plant’água no Brasil. “O solo é o melhor reservatório que temos para guardar e alimentar com água o estômago da Mãe Terra”, diz.
Suas técnicas se baseiam em construir estruturas de coleta de água pluvial, que é então filtrada e bombeada para dentro de um poço subterrâneo, preenchido com areia e cascalho. A água então escorre lentamente por esses materiais, chegando até o subsolo e recarregando os lençóis freáticos.
Masagi explica que entre 2% e 3% da água da chuva percola naturalmente no solo, mas que, se nos preparamos, conseguiremos aumentar esse percentual para entre 30% e 40%.
Dessa forma, se evita o desperdício de água devido à evaporação e o solo retém a umidade, ajudando as lavouras a crescerem mesmo nos períodos sem chuva. “Os que me chamavam de louco quando comecei passaram a me chamar de mágico”, brinca.
Com a sua fundação de “alfabetização hídrica”, Masagi diz já ter ajudado produtores rurais em mais de 9.000 locais, espalhados por 13 dos 36 Estados indianos. Sua organização está sediada em Bangalore, cidade do Estado de Karnataka, na região sul do país.
Mas ele se diz preocupado com a situação das mudanças climáticas. O plantador de água diz que falta apoio do governo, em todas as esferas administrativas do seu país, para que técnicas que ele considera “baratas e eficientes” sejam aplicadas nos projetos de engenharia de obras públicas.
“Precisamos ter regras de conservação de água estritas, monitoramento e punições para quem descumpri-las”, afirma Masagi. Ele ainda sugere que as gerações mais novas destinem 10% da sua renda a projetos de conservação de água.
No Brasil, de forma similar, Campos diz que não se trata de o governo simplesmente doar dinheiro para os agricultores, mas sim de buscar meios de incentivá-los a cuidar da água.
O agricultor diz que isso poderia ser feito via um mecanismo já existente: o PSA, pagamento por serviços ambientais, que remunera produtores rurais pelas ações que geram benefícios para toda a sociedade. É um incentivo para alavancar boas práticas no campo, que já tem registros de resultados eficientes.
“Um dia, o governo deu incentivo para a geração dos meus avós derrubar florestas, em 1900. Em 1960, pagaram meu pai para tirar o cafezal que meu avô plantou para fazer pastagens. Agora, tem que ter um incentivo para a gente colocar de novo essa água no lugar”, conclui.
Por UOL
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