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Natureza em primeiro lugar

Na pequena Brotas, a três horas de carro de São Paulo, corre um boato de que antigamente havia na entrada da cidade uma placa com um aviso: “visite, antes que acabe”. Mas não acabou. E a explicação que mais se ouve por lá é a de que é “tudo graças ao rio Jacaré-Pepira”, onde antigamente uma das únicas diversões era deslizar por suas águas montado em uma câmara de ar de caminhão ou trator (o embrião do atual boia-cross, descida de corredeira em botes individuais).

Claro, isso tudo foi bem antes do badalado circuito de turismo de natureza e de aventura se consolidar na região, mostrando na prática como preservar e colocar a natureza em primeiro lugar pode ser um ótimo negócio, em vários sentidos. Atualmente, o destino da cidade parece óbvio, seja para os que buscam práticas radicais de aventura em meio a natureza ou para quem deseja apenas relaxar entre cachoeiras, matas e muitos pássaros.

Assim como as águas do Jacaré-Pepira, as coisas foram fluindo naturalmente, conta o secretário de turismo de Brotas, Fábio Pontes. “Quando eu era moleque, vinha de moto aqui na [cachoeira] Astor, e tinha que entrar escondido, pulando a cerca”. Localizada em uma fazenda particular, o local ainda não era aberto para visitação. “O dono não gostava, criava vacas e vendia leite, não podia nem ver turista”.

Até que um dia um grupo chegou pedindo para entrar, sugerindo o pagamento de R$ 10 reais por pessoa ao dono da fazenda. Ele achou estranho alguém querer pagar para tomar banho de água gelada, mas topou. Outros turistas vieram e também pagaram. Depois de mais ou menos um mês, o fazendeiro nem titubeou, vendeu todas as vacas que tinha e mudou de ramo. Hoje o lugar é um dos sítios turísticos mais visitados de Brotas, com estacionamento, lanchonete e trilhas.

Mas, há algumas décadas, o cenário era outro, completamente diferente. O carro-chefe da economia do município era o agronegócio e a preservação do meio ambiente não era exatamente uma prioridade. No início de 1990, o turismo verde, atualmente a segunda principal atividade econômica local, sequer existia por lá, e por pouco nem chegou a acontecer, inviabilizado pela instalação de indústrias poluentes. O rio que atravessa o município, o Jacaré-Pepira, de fato, mudou toda a história.

Mudança de rota

A ameaça ao destino ecológico – e ao rio – de Brotas veio com o anúncio em 1992 da instalação de uma indústria de curtume, considerada altamente poluidora. Foi quando entrou em cena a ONG Movimento Viva Rio, que iniciou uma cruzada para conter essa e outras atividades predatórias. Criada sob o clima ambientalista da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, mais conhecida como Eco-92, ela propôs aos moradores um outro rumo para o desenvolvimento econômico do pequeno município.

O leito do rio foi mapeado e um levantamento minucioso foi feito sobre cachoeiras, fauna e flora. Até uma secretaria do meio ambiente foi criada no ano seguinte, em 1993. Era o início de um processo que mudaria a cara da cidade: estabelecer o turismo ecológico em Brotas como uma alternativa de crescimento e ao mesmo tempo preservando o Jacaré-Pepira.

O movimento do pequeno grupo de jovens ambientalistas enfrentou resistência no início. Barrar uma indústria que geraria empregos não parecia uma boa ideia para parte da população local. Mas apesar dos narizes torcidos, o turismo de natureza e de aventura começou a funcionar com passeios regulares pelas cachoeiras e o boia-cross em alguns trechos do rio Jacaré-Pepira.

Logo as atividades turísticas se diversificaram e começaram a atrair mais pessoas. Rafting, trekking, rapel, canionismo, tirolesa, arvorismo, queda livre, off road, entre outras dezenas de atividades. Pessoas de todas as partes do país começaram a aparecer em quantidades cada vez maiores.

Junto com o ecoturismo vieram demandas por hospedagem e serviços, relembra Pontes. “A cidade tinha apenas duas pousadas, hoje são 48 hotéis”. Segundo o secretário de turismo, um circuito gastronômico também foi criado para atender o volume crescente de visitantes. “A cidade tinha um único restaurante, hoje são 60”.

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Impactos do ecoturismo

Empresários de outras regiões começaram a ficar de olho no crescimento do ecoturismo em Brotas. Rafael Barbieri, foi um deles. Ele é um dos sócios do Ecoparque Viva Brotas, e também exerceu até outubro do ano passado a função de presidente da Abrotur, a associação que representa o setor de turismo na cidade.

“Em meados de 1990, o ecoturismo em Brotas começou a ferver”, relembra o empresário que trabalhava com turismo de aventura em outra cidade e que se mudou para Brotas em 1999. O impacto para o meio ambiente foi positivo, ressalta Barbieri. “Um estudo de avaliação da primeira década de atividades turísticas na região apontou que a mata ciliar ao redor do Jacaré-pepira havia quase triplicado.”

Ainda assim, a preocupação com o meio ambiente fez com que a cidade, por volta de 2001, contratasse outro estudo, desta vez para avaliar os impactos do turismo de aventura, realizado pela Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), de Piracicaba. “A ideia era estabelecer um limite de capacidade das atividades, por exemplo, do acesso às cachoeiras”, comenta o empresário de Brotas.

Outros aspectos relacionados aos impactos do turismo também foram avaliados, como o mapeamento da serrapilheira nas trilhas e do embarque e desembarque do rafting. “Foram criados limites para todas as atividades”, diz Barbieri.

Atualmente, o ecoturismo movimenta R$ 110 milhões por ano, segundo o secretário de Turismo, Fabio Ponte.

Clara Nana/UOL

Lucro e sustentabilidade

O crescimento rápido do circuito turístico em Brotas, localizada a 246 quilômetros de São Paulo, trouxe desafios. Uma das principais questões era: Como equacionar uma quantidade cada vez maior de turistas com a preservação do meio ambiente? Uma primeira medida para conter práticas predatórias foi criar uma lei municipal, a primeira normatização brasileira para o turismo de aventura, em 2003. O pacote com 13 leis explica como é possível praticar as atividades com segurança e sem danos à natureza.

Outra medida, mais recente, que tem a sustentabilidade como foco é o voucher turístico (pulseiras que os turistas usam nos ecoparques, concedidas pela prefeitura). “Com ele, conseguimos monitorar os acessos, saber quantas pessoas por dia estão praticando atividades, como o rafting no rio, por exemplo”, explica o secretário de turismo de Brotas.

Os alvarás de funcionamento são concedidos aos ecoparques mediante estudos de impacto que garantem uma operação que não prejudique o meio ambiente, detalha Pontes. “Cada atividade tem uma pulseira de uma cor, assim conseguimos monitorar de maneira mais detalhada as atrações turísticas.”

A busca por experiências de imersões mais prolongadas em meio à natureza trouxe uma demanda que obrigou ecoparques a se adaptarem, passando a oferecer também serviços de alimentação e hospedagem. Com tantas atividades, rafting, tirolesa, trilhas, e dezenas de outras, visitantes queriam ficar mais tempo, explica Cris Barbieri, uma das sócias do ecoparque Viva Brotas. Sem quadras esportivas ou piscinas, a proposta por lá é oferecer um contato mais íntimo e livre com a natureza.

Causar o mínimo de impacto é uma preocupação constante, segundo a proprietária. Na prática, isso se dá principalmente no tipo de construção de parte das hospedagens, com chalés em palafitas com madeiras de reflorestamento e no tratamento do esgoto por fossa séptica biodigestora, um sistema desenvolvido pela Embrapa que evita a contaminação dos lençóis freáticos e solo e produz adubo orgânico líquido.

A estrutura do restaurante também segue o mesmo padrão dos chalés, em palafita, e o cardápio prioriza produtores locais. “frutas, legumes, verduras, ovos, leite, pouca coisa aqui na minha cozinha vem de fora”, observa Cris. Segunda ela, o preço final dos produtos fica um pouco mais caro, mas turistas valorizam a iniciativa de incentivar a economia local.

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Águas que nascem da fonte

Embora não seja a explicação oficial, dizem que até o nome da cidade tem relação com as águas que brotam na região. Aliás, não por acaso, um dos lugares mais icônicos em Brotas é a nascente Areia que Canta, que desemboca numa pequena piscina natural, rodeada por uma abundante vegetação nativa.

Localizada dentro de um hotel fazenda, que ganhou o mesmo nome da fonte, ela tem seu acesso cercado de cuidados pelos proprietários do local. Vale explicar que o nome da nascente foi dado por causa do tipo da areia do local, muito rara, de puro quartzo, que emite um som semelhante ao de uma cuíca.

Quando começou o mapeamento para lançar o ecoturismo na região, o sítio chamou a atenção por causa da nascente e de um trecho de mais ou menos cinco quilômetros do rio Tamanduá, um dos afluentes do Jacaré-Pepira, que atravessa o terreno. A família que vivia ali, mesmo sem saber bem como seria, decidiu entrar de cabeça no novo projeto da cidade, conta Eloisa Farsoni, uma das proprietárias do hotel fazenda Areia que Canta. “Foi assim que começou nossa história.”

“Meu pai no início achou estranho cobrar para virem em nossa casa”, comenta Eloisa. Para receber os visitantes que queriam conhecer a nascente, trazidos por uma agência de turismo, abriram um café bem caseiro, com doces, bolos, sucos e quitutes em geral, mas em pouco tempo perceberam que só isso não seria suficiente. “Começamos a preparar também salgados, ovos, torresmo, mandioca”. Pouco depois, já tinha virado um restaurante e não demorou para se tornar enfim o hotel fazenda que é hoje.

Apesar da estética caipira, do climão de roça, a atenção com a sustentabilidade está por toda a parte. “É uma preocupação que nos acompanha desde o início, como explorar áreas de preservação permanente de forma consciente”, observa o outro proprietário do Areia que Canta, Evandro Farsoni, irmão de Eloisa.

Para proteger a nascente, por exemplo, toda a área de mata nativa foi replantada com mais de 30 mil árvores. Para preservar o rio, a mata ciliar foi ampliada. “É o que dá vida ao nosso negócio”, comenta o dono do hotel fazenda.

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Indústria verde

“Tratamos nossa água e também nossos dejetos”, conta o dono do hotel fazenda Areia que Canta. Para o material orgânico, ele explica utilizarem uma bactéria inoculada diariamente em uma fossa séptica, que transforma resíduos em gás carbônico e água. “Depois poderia até voltar para o rio, mas dispensamos em sumidouros para a umidade do solo de pastagens”, explica Farsoni.

O hotel fazenda também produz a própria energia através de três usinas fotovoltaicas de 75 KVA com 320 placas cada. No total, elas produzem mais ou menos 45 mil quilowatts por mês, uma economia em torno de R$ 37 mil, segundo informou o dono.

O aquecimento das águas de piscinas, cozinha e banho é feito por uma fornalha de biomassa e energia solar. Além de utilizar uma fonte renovável, garante uma economia de 90% em relação ao sistema de gás.

O cuidado com o meio ambiente também mudou a realidade de uma antiga fazenda de café em Brotas, chamada Cassorova, que na década de 1990 se lançou no ecoturismo, onde funciona hoje um ecoparque com o mesmo nome.

“Uma ação pontual e constante nossa é o reflorestamento de nascentes”, afirma o gerente do ecoparque Cassorova e atual presidente da Abrotur, Fábio Ferreira. “A questão hídrica é uma das nossas principais preocupações”.

Ele conta que um dos efeitos dessas ações é a reaproximação da natureza selvagem. “Quanto mais reflorestamos, mais os animais silvestres se reaproximam”. Áreas que eram usadas para cultivo de café foram reflorestadas com árvores nativas.

O ecoturismo está envolvido direta ou indiretamente em cerca de 70% da economia de Brotas, informa o presidente da Abrotur. “E além do impacto social e econômico, é uma indústria verde, que não polui.”

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Natureza restaurada

Após uma disputa judicial por terras entre credores, restou – porque ninguém quis – uma beirada de serra dentro da área de outra antiga fazenda de café da região, com construções abandonadas há mais de 25 anos e com lixo por toda a parte. “Não tinha cerca, energia, água, foram décadas de abandono”, descreve Eduardo Ataliba, que decidiu se mudar para lá e sem muito planejamento restaurar o que ainda restava do período cafeeiro. “Começamos a trabalhar e não terminamos até hoje.”

“Na primeira semana começamos plantando árvores, porque isso aqui era um nada”, relembra Ataliba, que ergueu no local o hotel fazenda Primavera da Serra. Além de permitir uma viagem no tempo, mais precisamente à fase do cultivo do café em Brotas no início do século 20, o local abriga também um circuito de pistas e trilhas de off-road construída em uma área de reflorestamento.

O aquecimento de água, ali, é por energia solar e toda a mão de obra é local. O reflorestamento das cabeceiras de água, somado aos cuidados com a mata, trouxe de volta animais em busca de casa e comida, diz Ataliba.

Tem muita cobra, quati, irará, tamanduá, macaco-prego, veado-campeiro, guaxinim, cachorro-do-mato, lobo-guará e dezenas de tipos de pássaros.

Rio de águas limpas no centro da cidade

O ecoturismo em Brotas foi um grande negócio para a economia local. O município é hoje um dos principais destinos no mapa do turismo de aventura do país. Para o Jacaré-Pepira também foi bom, claro. Quem visita Brotas, não demora muito a ouvir algum morador orgulhoso falar sobre o rio de águas limpas que atravessa o centro da cidade.

De acordo com o secretário de turismo, Fábio Pontes, o rio Jacaré-Pepira, com boa parte de sua extensão preservada, é um dos afluentes do Tietê em melhores condições. “Temos um trabalho forte de limpeza, hoje ele tem 89% de pureza, é um dos mais limpos do estado de São Paulo”.

Consultada pela reportagem de Ecoa, a Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) informou possuir três pontos de monitoramento no rio Jacaré-Pepira, nos municípios de Brotas, Dourado e Bocaina. Nos últimos dois anos, segundo a companhia, o Índice de Qualidade da Água (IQA) mostrou qualidade boa.

A companhia informou ainda que, ao todo, no estado, são 477 pontos de amostragem, em 283 corpos hídricos. Do total de pontos monitorados em 2019, 61% apresentaram qualidade média anual boa. E apenas 9%, qualidade média anual ótima. Ou seja, o rio Jacaré-Pepira, segundo a Cetesb, não estaria no pequeno grupo dos mais limpos do estado, apesar da média boa.

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Moradores reivindicam importância do rio

A questão da limpeza, no momento, não parece ser o principal problema do rio Jacaré-Pepira. O que está tirando o sono do setor de turismo e da população de Brotas é o baixo nível das águas. Umas das razões é o escasso volume de chuva nos últimos meses. Porém outros fatores agravam este cenário.

Décadas de captação desproporcional à capacidade hídrica atual do Jacaré-Pepira e de seus afluentes por parte de indústrias locais é apontado como um dos principais problemas. E mais recentemente a instalação de uma tubulação de cinco quilômetros dentro da bacia da nascente do rio abriu um novo campo de batalhas.

O sistema de captação de águas do rio foi construído pela prefeitura do município vizinho, São Pedro, que atravessa um grave período de seca. Mas a tubulação foi feita sem a autorização de Brotas. O caso foi parar na Justiça.

O imbróglio em torno da captação do rio é antigo, lembra o empresário local, Márcio Guella. “A lei de outorga é de 1960, o volume de água e o tamanho da população mudou muito em 60 anos”. Aproveitando o pleito municipal, um abaixo-assinado foi criado na internet, para cobrar do poder público e reafirmar a importância do rio.

“Os assinantes deste abaixo-assinado sabem que a importância do rio não se limita à esfera econômica. Ele é central no bem-estar, no meio ambiente, na qualidade de vida, na cultura, na saúde e na educação de todos os moradores da cidade. Colocar o rio no centro das preocupações do poder público, é cuidar de todos os brotenses”, diz o texto, que recebeu mais de 11 mil assinaturas.

As medidas apontadas podem ser um bom caminho para ações de preservação de outros rios pelo Brasil

  • Aplicar e fiscalizar o cumprimento da Lei 12.651/2012, referente às Áre-as de Preservação Permanente (APP), com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e asse-gurar o bem-estar das populações humanas.
  • Coordenar, junto com iniciativa privada, associações e ONGs, um pro-jeto de recuperação e de proteção de todas as nascentes do município.
  • Incluir a Educação Ambiental conforme estipulado pelo Ministério da Educação nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) a partir do ano de 1997 no currículo de todas as escolas da cidade, qualificando ade-quadamente professores para essa cartilha pedagógica.
  • Proporcionar para a população um Parque dos Saltos limpo, gratuito, seguro e pedagógico para que a visita fortaleça o vínculo da população com o Rio. Sempre ter em mente que o parque é também moradia de outras espécies que também fazem uso.
  • Atualizar junto ao DAEE o Q7-10, que permite a captação despropor-cional à capacidade hídrica atual do rio Jacaré e seus afluentes.
  • Interromper todas as captações hídricas clandestinas e monitorar as captações legais dentro da Bacia Hidrográfica do Tietê-Jacaré (CBH-TJ).
  • Suspender temporariamente novas outorgas de captação hídrica no CBH-TJ até que o Q7-10 seja atualizado e um estudo de vazão seja realizado.
  • Contratar um estudo técnico integral de todas as propriedades hídricas do Rio Jacaré e das vazões necessárias para a manutenção da prática de atividades turísticas.
  • Implementar e fiscalizar um sistema de saneamento básico nas áreas rurais da cidade.
  • Dimensionar o tratamento de esgoto para ter esgoto 100% tratado no município.

Por UOL

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