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Conservar os manguezais amazônicos fortalece a adaptação das comunidades tradicionais à crise climática

Com “pé na lama” se inicia a aventura pelas trilhas naturais dos manguezais amazônicos, entre conversas com pesquisadores e pescadores atuantes na costa paraense. O manguezal significa muito mais do que berçário de vida e de ciência. Além de fonte de alimento e sustento, esse ecossistema é também um espaço de luta e resistência por oferecer serviços culturais, de regulação climática e de provisão que beneficiam os povos tradicionais, os cientistas e a sociedade em geral. 

A Amazônia tem muitos matizes e um deles é a Amazônia Azul, onde surgem os manguezais que se estendem desde o Oiapoque, no Amapá; passando pelos maretórios do Pará (espaço composto por lugares simbólicos e produtivos, segundo definição de lideranças do litoral paraense); até chegar aos lençóis maranhenses. Esses ecossistemas ocupam 80 municípios costeiros com 118 distritos, onde existem 23 unidades de conservação federais. Uma pesquisa realizada em 2019 aponta que mais de 85% dessa floresta azul amazônica se insere em alguma unidade de conservação, sendo a maioria abrigada por Reservas Extrativistas Marinhas (Resex Mar). Nesse contexto, grande parte dos manguezais amazônicos é gerida pelo Núcleo de Gestão Integrada (NGI) de Bragança, criado em 2018 pela Portaria ICMBio No 354, ocupando quatro municípios e nove distritos costeiros no estado do Pará. Esse NGI administra quatro Resex Mar criadas em 2005: Resex Mar de Tracuateua (279 km2), Resex Mar de Caeté-Taperaçu (425 km2), Resex Mar de Araí-Peroba (116 km2) e Resex Mar de Gurupi-Piriá (741 km2). Essas Reservas Extrativistas Marinhas abrigam manguezais que foram reconhecidos como Sítio Ramsar Estuário do Amazonas e seus Manguezais, em 2018.

NGI Bragança na costa amazônica paraense distribuído em quatro municípios e nove distritos costeiros na Região Geográfica Intermediária de Castanhal na Região Geográfica Imediata de Bragança. Arte: Julia Lima.

O papel dos manguezais no equilíbrio climático 

Existem três espécies arbóreas de mangue na costa amazônica paraense: o mangue vermelho (Rhizophora mangle), popularmente conhecido como “mangueiro”; o mangue preto (Avicennia germinans), conhecido como “siribeira” ou “siriúba”; e o mangue branco (Laguncularia racemosa), chamado de “tinteiro”. Cada uma delas possui uma estrutura típica que possibilita as mais inteligentes formas de adaptação ambiental. O mangue vermelho, por exemplo, estende suas “mãos” em forma de raízes para se segurar à lama, assim como as raízes do mangue preto precisam respirar saindo da lama (pneumatóforos) para poder resistir à dinâmica costeira das macro marés típicas do norte brasileiro. 

“A formação geológica da costa amazônica paraense é muito recente em termos evolutivos e ainda está em processo de ajuste. Por isso, possui uma dinâmica muito forte fazendo com que o ajuste seja constante por causa da sedimentação, onde novos bancos de lama surgem como consequência de toda essa dinâmica. A Amazônia é isso, ainda está muito volátil. Tudo acontece muito rápido e em grande escala”, explica o professor Marcus Fernandes. Ele trabalha há mais de três décadas com ecologia de manguezal e atua como coordenador do Laboratório de Ecologia de Manguezal (LAMA) do Instituto de Estudos Costeiros (IECOS) da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de Bragança.

Fernandes também é cofundador da Sarambuí, Organização da Sociedade Civil (OSC) e ainda atua como coordenador do programa ambiental no projeto Mangues da Amazônia, criado por um grupo de pesquisadores do LAMA que têm uma paixão em comum, o manguezal. 

Embora os manguezais amazônicos sejam “pobres” em termos de diversidade vegetal – a floresta de mangue está composta por três tipos de espécies, o que representa uma grande diferença da Amazônia verde – a riqueza desse ecossistema é muito especial por salvaguardar trocas energéticas, além da segurança alimentar dos povos do mangue, saberes tradicionais transmitidos entre gerações e até expressões artísticas que vêm da inspiração desse importante ecossistema. 

Os manguezais desempenham um papel fundamental na captura de gás carbônico (CO2), um dos principais gases de efeito estufa (GEE), e isso está relacionado à anatomia das árvores. “O manguezal é altamente produtivo por produzir muita matéria orgânica e estocar muito carbono em suas raízes, em seus troncos, em suas folhas, em seus propágulos e em suas sementes. Com a serrapilheira presente na lama do mangue e as características únicas desse solo [lama], o ecossistema consegue estocar muito carbono por longos períodos. Isso é importante para a ciclagem e armazenamento do carbono”, ressalta Paulo César Costa Virgulino-Júnior, pesquisador de doutorado do LAMA em Bragança. Ele  também atua como coordenador do Projeto Conectividade das espécies de mangue, financiado pela Rufford Foundation, e vem percorrendo os manguezais amazônicos há quase uma década. 

Pesquisas podem apontar novos caminhos para conservação e adaptação

O que para muitos pode ser considerado uma “pobreza”, em termos de diversidade, para os pesquisadores do mangue significa riqueza que ainda vem sendo pesquisada com uma das ferramentas mais poderosas, a genética, utilizada para vislumbrar a história e a evolução das espécies de mangue. Os futuros resultados dessas pesquisas irão ampliar o nosso entendimento sobre como os mangues estão conectados entre si, além de melhorar as estratégias de conservação e de planejamento de adaptação às mudanças climáticas. 

“Dizer que o mangue na Amazônia é tudo igual não é necessariamente verdade, embora essa diversidade genética seja ‘pobre’ ainda são necessários mais estudos, incluindo o monitoramento que é essencial para a melhor compreensão da variação genética dos tipos de mangues”, analisa o professor Adam Rick Bessa da Silva, pesquisador do Laboratório de Evolução (Levo) da UFPA em Bragança. “Quando a gente olha as populações [de mangue] frente ao aquecimento [global], provavelmente teremos ambientes modificados pelo aumento da temperatura e um regime de chuvas menor. Quando analisamos que nem todos os indivíduos [arbóreos] são adaptados a um ambiente mais seco, então haverá uma perda de diversidade”, acrescenta o especialista.

O pesquisador explica que uma série de fatores influencia na conexão entre as espécies de mangue. Os manguezais acima do Rio Amazonas, por exemplo, formam um grupo provavelmente não conectado com outros mangues em outras regiões. Porém, fatores relacionados às mudanças climáticas representarão um novo desafio para gerar soluções de adaptação das espécies de mangue, considerando todas as interconexões climáticas envolvidas. 

A diversidade e a estrutura dos mangues influenciam na captura do gás carbônico e no papel que os manguezais amazônicos desempenham para a mitigação dos seus efeitos para a região e talvez para o mundo. A lama é o principal compartimento para a captura de “carbono azul” do ecossistema manguezal. O cheiro forte de lama retrata muitas trocas energéticas que acontecem entre o mar e a terra firme. O típico cheiro de “ovo podre” reflete a interação do solo anóxico (lama) com a água do mar. Segundo o professor Hudson da Silva, coordenador da equipe Emissões de Gases no projeto Mangues da Amazônia, o manguezal da Resex Mar de Caeté-Taperaçu captura e fixa carbono na lama entre cinco e dez vezes mais do que outras áreas de floresta de terra firme, isso dependendo da imensa área dos manguezais amazônicos.

Essas características da lama também são percebidas pelo conhecimento tradicional dos pescadores. Um deles comenta que “é por causa da folha do mangue” que a lama exala um estranho e forte cheiro, depoimento da reportagem climática elaborada pelos repórteres do mangue, Eric Wagner e Jucenilton Ferreira, como parte do Projeto Observatório do Mangue financiado pela Rufford Foundation e o Projeto Monitoramento Climático Tradicional apoiado pelo Fundo Casa Socioambiental.

Mercado de carbono nos manguezais gera questionamentos e dúvidas

Manguezal em Caetê. Foto: Indira Eyzaguirre.

Todas as nuances envolvidas tornam complexo o enfrentamento dos impactos às mudanças climáticas no contexto dos ecossistemas de manguezal, desde os pontos de vista científico e econômico, assim como da própria estratégia climática com o mercado de carbono azul. Atualmente, existem preocupações com propostas de mercado de carbono por parte dos coletivos e ativistas das comunidades costeiras que dependem do manguezal. Vale ressaltar que foi encaminhada uma solicitação à Carbonextpara esclarecimento de informações sobre o processo de negociação inicial que vem acontecendo em 12 Reservas Extrativistas Marinhas localizadas na costa amazônica, mas até o fechamento desta edição não houve nenhum tipo de posicionamento. 

Existem metodologias validadas para calcular o real valor monetário do “mangue em pé” e dos indivíduos arbóreos independentes da fauna conectada. A Verra é talvez uma das certificadoras mais efetivas no processo de mercado de carbono voluntário, com diversas metodologias por tipo de atividade e ecossistema, como as áreas úmidas. Em projetos de mercado de carbono azul geralmente é utilizada a metodologia VM0007 REDD+. Mas, embora essa seja uma das mais empregadas, ainda possui muitas lacunas técnicas, principalmente quando se trata dos diversos matizes dos manguezais amazônicos. 

Não por acaso, pesquisadores apresentam suas preocupações quanto à metodologia e ao nível de risco nos cálculos por compartimentos (lama, árvore de mangue, raízes, serrapilheira) e até por tipo de espécies de mangue, porque não é suficiente analisar os valores nas fórmulas já pré-estabelecidas. É necessária uma avaliação de forma contextualizada para ter valores próximos à realidade, sendo que muitas empresas de “fora” vêm com propostas de implementação de um mercado que ainda é pouco conhecido. 

Além do mercado de carbono, existem outras formas para “capitalizar” as unidades de conservação. Por um lado, essa é vista como uma oportunidade de financiamento para realizar atividades na extensa área do NGI Bragança. Mas, por outro, para os povos do mangue ainda existem muitas lacunas no acesso à informação sobre esse processo. Por exemplo, o próprio Programa Adote um Parque foi lançado “sob olhares de desconfiança”, sendo muito questionado pelos movimentos e ativistas das marés. 

Segundo o chefe do NGI Bragança, o advogado Josiel Barbosa Vasconcelos, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em 2021 houve interesse da Caixa Econômica Federal para a adoção de duas Resex (Tracuateua e Caeté-Taperaçu). Entretanto, lideranças comunitárias e representantes da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas, Povos e Comunidades Tradicionais Extrativistas Costeiras e Marinha (Confrem) “interromperam as negociações” com um pedido ao Ministério Público Federal de exclusão das Resex Mar desses arranjos. 

“A gestão do NGI Bragança tenta solucionar legalmente essas dificuldades impostas por algumas lideranças para recolocar as Unidades no Programa, após ampla consulta das populações interessadas, o que pode ajudar muito a gestão das quatro UC, considerando que nenhuma dessas áreas [protegidas] tem apoio de projetos de forma contínua, contando apenas com os escassos recursos orçamentários para o financiamento de todas as suas atividades”, afirma. A adoção das quatro Resex Mar significaria um valor de R$ 7,7 milhões ou mais de 1,5 milhões de euros, anualmente, para a gestão do Núcleo de Bragança.  

Foto: Indira Eyzaguirre.

A importância do mangue para a fauna

Além das espécies arbóreas, o manguezal é um ecossistema composto por um tipo de fauna que cumpre um papel fundamental na regulação e manutenção dessas florestas, principalmente, pelas relações entre a lama, árvore e atmosfera. “Há vários micro habitats dentro desse ecossistema. Por exemplo, existem caranguejos que vivem no solo do manguezal, como o caranguejo-uçá (Ucides Cordatus), conhecido também como caranguejo do mangue. Existem espécies de caranguejo que vivem nas copas das árvores, descem para se reproduzir e depois voltam”, explica o biólogo e pesquisador Darlan de Jesus de Brito Simith, coordenador do Grupo de Manejo e Carbono no Projeto Mangues da Amazônia. 

Segundo o pesquisador, também existem outras espécies que vivem nas margens dos estuários, como o gênero Uca. Essas espécies se alimentam de matéria orgânica e dos microrganismos que vivem na própria lama do manguezal. Elas atuam como filtradoras, já que o caranguejo coloca a lama na boca, filtra o que é necessário para a sua necessidade e depois libera uma “bolinha” de lama filtrada. “Com esse comportamento ele escava as tocas e promove a mistura das camadas de solo [lama] tornando a lama disponível para outros organismos”, explica o biólogo. 

O caranguejo faz reciclagem das folhas através do consumo, processando e excretando, facilitando, assim, a ação de fungos e bactérias na degradação da vegetação, sendo importante, também, para a captura de “carbono azul”. Ou seja, tudo está amplamente conectado no ecossistema manguezal, incluindo nesse contexto, as árvores, a fauna e os componentes físicos desse sistema, salvaguardando na lama uma riqueza inestimável nas margens dos estuários amazônicos. 

Mas o manguezal não é só composto por caranguejo. Existem outras espécies de aves e peixes e também mamíferos, incluindo morcegos, que utilizam os troncos e espaços ocos de árvores de mangue como abrigo e habitat. A bióloga, professora e apaixonada pelos morcegos, Lanna Jamile Corrêa da Costa, também pesquisadora no LAMA, comenta que “existem as outras espécies que merecem atenção, que utilizam esse recurso com muita intensidade”. Segundo a especialista, “muitas pessoas não sabem que existem morcegos que só encontram alimentos no manguezal, por ser um lugar perfeito para encontrar os seus recursos, como os que comem só peixes e tem bastante peixe nos furos que cortam os manguezais”. 

A bióloga acrescenta que, além de alimento, os morcegos também encontram no manguezal um lugar de tranquilidade, já que pelo fato de ter sedimento mais lamoso, não têm pessoas vivendo nesses ecossistemas. Ela destaca, ainda, que a falta de conhecimento sobre a importância do manguezal para a diversidade biológica pode levar a uma série de problemas socioambientais, inclusive de saúde pública. 

A relação entre o clima e a saúde dos povos do mangue 

A saúde dos povos do mangue está relacionada diretamente com o desmatamento e as variações climáticas. Pesquisas já sinalizam que os surtos de raiva humana entre os anos 2004 a 2005, nas comunidades tradicionais localizadas na Resex Mar de Araí-Peroba próximas ao manguezal, foram consequências do desmatamento ocasionado pela especulação de mineradoras. Naquela época, a falta de informação ocasionou muitas mortes, devido a essa doença, principalmente, porque as pessoas estavam invadindo o habitat natural dos morcegos, criando condições perfeitas para a expansão do vírus da raiva humana e animal. 

“Muitos morcegos utilizam o manguezal para obter seu alimento e abrigo, portanto o desmatamento os faria ter que procurar outro ambiente que ofereça os recursos necessários, causando o estresse imune. O calor pode deixar alguns indivíduos imunodeficientes e suscetíveis ao desenvolvimento de doenças”, explica a pesquisadora. 

A especialista comenta, ainda, que os agentes comunitários de saúde (ACS) têm um importante papel na manutenção da saúde das comunidades através de inúmeras ações que desenvolvem, dentre as quais, a transmissão de conhecimentos sobre prevenção de algumas doenças. Assim, os pesquisadores envolvidos com o tema consideram que a implementação do Plano de Adaptação Climática relacionado à saúde é uma medida indispensável para a manutenção do bem-estar humano das populações tradicionais. 

Nesse contexto, se considera que a implementação de um sistema de monitoramento epidemiológico para combater doenças relacionadas às mudanças climáticas representa uma medida fundamental, principalmente, porque a detecção da alteração na produção de anticorpos pode gerar alertas, tornando possível o acompanhamento mais profundo pelos agentes comunitários de saúde diante de novos surtos.  

Os manguezais diante do aumento do nível do mar

Segundo projeções do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), até 2100 haverá um acréscimo de até 0,5% de salinidade, além de até mais de 10% de aumento nas precipitações e de até 20 centímetros no nível do mar na América do Sul. Diante desse cenário, os manguezais amazônicos “irão se sair bem”, segundo pesquisadores envolvidos com o tema. Especialistas comentam que, embora o aumento do nível do mar, provavelmente o maior problema em lugares de macro maré como acontece nos manguezais amazônicos, algumas áreas serão realocadas de forma natural e as praias vão poder aumentar em outros lugares ao invés de desaparecer. Tudo isso significa que os campos alagados, provavelmente, serão substituídos por manguezal, o que representaria um ganho no final das contas, por causa da “movimentação” desse ecossistema para dentro da terra firme. 

No entanto, este é um cenário muito diferente comparado com o dos manguezais das regiões sul, sudeste e nordeste, que provavelmente irão “desaparecer” diante um aumento abrupto do nível do mar. O professor Marcus explica que, muito provavelmente, a relação de distribuição atual dos manguezais brasileiros (80% na Amazônia e 20% nas outras regiões) irá mudar, já que os manguezais amazônicos irão aumentar em 10% em relação a outras regiões. 

Essa problemática causa preocupações, tendo em vista que os manguezais equilibram outros sistemas pela sua conectividade. Isso envolve tanto sistemas marinhos como os terrestres, tornando os manguezais amazônicos muito importantes para a Década do Oceano, assim como a floresta que se insere no bioma.

Arte: Julia Lima.

A crise climática é real, reitera pesquisador

Os desastres reconhecidos pela Secretaria Nacional de Defesa Civil e que têm acontecido na costa amazônica paraense envolvem seca ou estiagem, enchentes, alagamentos ou inundações, além de vendaval e deslizamentos. Embora o negacionismo sobre o tema venha ganhando repercussão na atualidade, as mudanças climáticas são reais, “e não podemos mais tapar o sol com a peneira”, sinaliza o professor Nils Asp, coordenador do Laboratório de Geologia Costeira (Lageco)  da UFPA, Campus de Bragança, ao ressaltar  que a zona costeira e, sobretudo, as suas populações, serão afetadas pelo aumento do nível do mar. 

Além do mais, a relação do regime de chuvas, que determina a vazão dos rios e a quantidade de material que é transportado para a zona costeira, com a maioria dos rios que correm para direção do mar, irá mudar com os efeitos da crise climática. Essa dinâmica está relacionada com os serviços de regulação e manutenção do manguezal, já que além de incluir a biodiversidade, a floresta de mangue cumpre um papel muito relevante na proteção da zona costeira. 

“A vegetação costeira [manguezal] auxilia a costa, retendo sedimento que não vai ser transportado para as partes mais fundas do oceano. Além disso, tem o serviço ecossistêmico de proteção em relação à subida do nível de mar porque os manguezais conseguem amortecer as energias das ondas e marés, desde que haja sedimento suficiente.  O manguezal inclusive poderia acompanhar essa subida do nível do mar com uma taxa de sedimentação que compensasse”, explica o professor Nils Asp. 

Embora previsões indiquem que a floresta de mangue irá se sair bem, frente a essas mudanças, os ciclos biológicos da fauna do manguezal podem mudar se os regimes de chuva e temperatura também mudarem na região. A reprodução do caranguejo-uçá, por exemplo, acontece na estação chuvosa e somente nos dias sob influência da lua cheia, ou lua nova, porque nesse período as águas dos manguezais estão menos salgadas, dinâmica ocasionada pelas chuvas intensas e descargas dos rios de água doce, conforme explica o pesquisador Darlan de Jesus de Brito Simith. Isso significa que os caranguejo-uçá nascem nos meses com maior precipitação (na região em janeiro e abril), mas para evitar a mortalidade das larvas pela salinidade baixa, elas são naturalmente transportadas pelas correntes de maré vazante onde encontram as melhores condições de salinidade e, assim, podem crescer na época de verão, quando o caranguejo irá trocar de carapaça (agosto e dezembro), como é sinalizado em algumas pesquisas desenvolvidas pelo especialista.

Assim como a salinidade, outro fator importante para o ciclo de reprodução do caranguejo é a temperatura (25 a 30 ºC são condições consideradas ótimas), principalmente, para o desenvolvimento das larvas que são o futuro da economia azul dessa espécie na região amazônica. 

O ciclo de vida do caranguejo-uçá e a economia azul das populações tradicionais

Caranguejo: recurso alimentício importante. Foto: Indira Eyzaguirre.

O pesquisador Simith ainda sinaliza que mais estudos precisam ser realizados, principalmente, para se compreender o processo de adaptação e resiliência dos caranguejos nas fases juvenil e adulta, nas quais são mais resistentes às mudanças de temperatura e salinidade. Sem essa espécie, milhões de reais podem ser perdidos da economia azul tradicional, já que o caranguejo-uçá demora em média um ano para crescer 1 centímetro da carapaça. No entanto, o tamanho permitido legalmente para comercializar caranguejo in natura é uma largura da carapaça de cerca de 6 centímetros.  

Se as previsões do IPCC se confirmassem, a segurança alimentar de mais de 200 famílias do NGI Bragança estaria em risco, já que as atividades pesqueiras praticadas de forma tradicional dependem muito da relação dos ciclos climáticos com os ciclos biológicos das espécies de mangue. O caranguejo-uçá é o principal recurso de sustentação da economia desses povos, chegando até o sul do Brasil. 

O extrativismo desse crustáceo, com os “tiradores” de caranguejo, foi desenvolvido a partir da década de 1970, com a construção da estrada PA-458. O engenheiro de pesca, John Gomes, atual gestor do projeto Mangues da Amazônia, realizou a pesquisa Cadeia Produtiva do Caranguejo-uçá no Município de Bragança, Nordeste Paraense, Costa Amazônica Brasileira, no âmbito do Lama/UFPA, em 2018.

A pesquisa relata a importância da pesca desse crustáceo para as populações do mangue, já que pensar nas pessoas que residem próximas às florestas de mangue é também pensar nas dinâmicas nas quais elas estão inseridas e nas fontes de alimento que têm, como é o caso do caranguejo-uçá. 

“De mil famílias entrevistadas na pesquisa, 65% têm ligação direta com a cadeia produtiva do caranguejo-uçá, seja por meio da pesca do caranguejo ou na catação. Esse caranguejo pode ser vendido tanto in natura [comercio com abrangência estadual] e beneficiado, podendo chegar até Amazonas, Maranhão, Ceará, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Somente na cidade de Bragança, essa cadeia produtiva movimenta mais de R$ 11,525 milhões por ano, mostrando a importância para essas famílias e para a economia local”, ressalta John Gomes.

Além do caranguejo, o mexilhão (sururu) também depende das condições climáticas por se reproduzir na época de verão, como comenta dona Teresa Santos de Brito, marisqueira da Vila do Bonifácio da Resex Mar de Caeté-Taperaçu que já percebe esses riscos climáticos através do conhecimento ecológico local. “O sururu só morre quando chove, porque a água é doce. Tirando isso eles não morrem porque são protegidos por esta lama e a água salgada. Ele [sururu] é do sal. Agora, depois que dá muita chuva, eles morrem, porque não aguentam água doce, mas no inverno eles nascem de novo”, afirma a marisqueira enquanto tira sururu dentro do manguezal. 

A pesquisadora e bióloga Luciane Ferreira, do projeto Monitoramento Climático Tradicional, que pretende aplicar a alfabetização climática e ciência cidadã, desenvolvida pela OSC Sarambuí na Vila do Bonifácio, comenta que muitos marisqueiros e marisqueiras estão falando que o clima quente está influenciando muito na pesca e que a água das áreas costeiras, principalmente, dos poços, está cada vez mais quente. Isso está afastando os mariscos, que já não são encontrados com a mesma frequência de antes. Os pescadores de alto mar também relatam que os cardumes se afastaram por conta do clima quente e que atualmente eles têm que pescar cada vez mais longe. 

Por isso é indispensável pensar em soluções de adaptação climática para manter e melhorar a qualidade de vida das populações humanas pensando na economia das atividades que dependem do clima, como a pesca artesanal. Uma das formas mais efetivas de proteção do caranguejo-uçá é a fiscalização na época de defeso, embora ainda existam grandes lacunas no conhecimento para definir períodos exatos, considerando que a costa amazônica paraense, além de extensa, tem muitos matizes, peculiaridades e interconexões socioambientais. 

Em relação a essa problemática, o pesquisador Darlan, que  integra a Rede de Monitoramento das Andadas Reprodutivas do Caranguejo-uçá (Remar), localizada em toda a costa brasileira, enfatiza que foi graças a essa rede que se tornou possível estudar o ciclo do caranguejo e implementar um sistema de proteção dessa espécie “A previsão sobre qual lua específica [cheia ou nova] o caranguejo-uçá seleciona a cada ano para se reproduzir tem sido o maior desafio para as autoridades responsáveis pela implementação do período de defeso nos municípios costeiros”, comenta pesquisador.

Exemplos de adaptação e de demandas comunitárias reprimidas na costa paraense

Venda de caranguejo em Bragança. Foto: Indira Eyzaguirre.

Um dos principais impactos naturais existentes na costa paraense ocorre devido à dinâmica costeira e à erosão ocasionada por esse fenômeno.  Isso significa que as populações costeiras, principalmente, aquelas que residem em áreas de praias próximas aos manguezais, são muito mais adaptadas devido às constantes mudanças no seu território. Muitas comunidades como Quatipuru Mirim Praia, localizada na Resex Mar de Tracuateua, que tem ruas de areia estão em constante movimento, já que as famílias de pescadores e pescadoras perdem seus terrenos e suas casas pela constante vinda da maré.  Por isso elas têm achado um meio de adaptação a partir da construção de casas de madeira desmontáveis contextualizada e adaptada à geomorfologia dos estuários onde residem.

Da mesma forma, no município de Augusto Corrêa, a agente de Saúde Comunitária, Marizete Martins, da comunidade Perimirim, localizada na Resex Mar de Araí-Peroba, lembra de como era essa comunidade há mais de 16 anos. “Eu conheço a erosão, tem a ver com mudanças climáticas porque a nossa vila (Perimirim) era muito extensa, depois que foi desmatada começou a cair a escola, a igreja e o posto de saúde. Hoje a vila está praticamente no meio. Nós tínhamos um centro comunitário muito lindo.  Tudo isso sumiu há 16 anos mais ou menos”, recorda.

Além disso, a falta de acesso à água e a um sistema de saneamento básico nas comunidades praianas é um problema que atinge diretamente os direitos constitucionais mais básicos dessas populações. Em localidades como a Quatipuru Mirim Praia existe essa demanda hídrica por ser uma região com água salobra, onde a implementação de poços artesianos não tem tido sucesso. Essa carência faz com que muitas mulheres tenham que caminhar mais de 1 quilômetro pelas ruas de areia para conseguir alguns litros de água potável, ou ter uma renda para compra-la ou, ainda, esperar a cisterna municipal para disponibilizar esse recurso tão fundamental. Apesar de toda essa precariedade cotidiana, os povos praianos são considerados altamente resilientes, embora um processo de adaptação seja imprescindível diante das incertezas do futuro climático da região dos manguezais amazônicos e suas diversas interfaces. 

“Cada região tem uma história para contar.  Vai depender de onde essas comunidades vão estar conectadas.  Elas vão fazer realocação de onde moram e das suas atividades. Cada região vai ter seu cenário e esse cenário tem que ser trabalhado individualmente. Então é preciso entender como essa região utiliza seus espaços e que tipo de espaços estão disponíveis para ser utilizados, mas o cenário é basicamente ir em direção ao continente”, analisa o professor Marcus Fernandes. 

Acesso à informação qualificada é demanda central

Isso significa que grandes desafios serão confrontados para implementar o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, de 2016, e, até mesmo, a implementação da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), instituída em 2009, mas ainda sem  resultados efetivos. Em 2021, o Estado do Pará decidiu criar a Política Estadual sobre Mudanças Climáticas, o que sinaliza com esperança para efetivar tais planos. 

Além disso, esforços conjuntos deverão ser realizados, entre a academia, o terceiro setor e os governos em todas as esferas para que seja possível agir na interface ciência-política. Por exemplo, a ciência com a produção de informação, o terceiro setor com a democratização e as organizações governamentais efetivando as políticas públicas contextualizadas. Mas ainda existem grandes lacunas, desde a falta até o acesso a essa informação climática, além da falta de interesse de atores do setor governamental. Recentemente, houve um chamado para audiências públicas com pautas climáticas da Delibera, mas nenhum município do NGI Bragança apresentou suas manifestações. Isso sinaliza para um contexto preocupante, já que nesses espaços podem ser debatidas as demandas comunitárias sobre o tema.

 “O governo poderia fazer alguma coisa para que o pessoal deixe de desmatar, porque com o desmatamento vem muita chuva e raios [desequilibrando o ambiente]. Nós dependemos do tempo para pescar, o sururu fica insosso em inverno, o camarão some com a chuva intensa, o mangal é coberto de água e fica difícil para tirar caranguejo”, comenta João Sousa, pescador da comunidade Araí, entrevistado pelas Jovens Repórteres do Mangue, Maria Paula de Sousa e Clara Gonçalves de Lima que também fazem parte do Grupo Protetores do Mangue do projeto Mangues da Amazônia. 

O ativista José Ferreira, conhecido por Seu Dego, da Resex Mar de Araí-Peroba, destaca a sua preocupação com a falta de mais espaços públicos onde as comunidades possam colocar suas demandas, já que para ele é importante reconhecer o papel dos povos do mangue dentro dos maretórios. “Para mim enquanto mobilizador social, a criação e ampliação da Resex é um ato histórico. Se aquele ato não tivesse acontecido, quem sabe boa parte do nosso mangue e dos nossos apicuns já tinham sido escavados, com alguns elementos químicos, fazendo destruição, matando os peixes e causando impactos. Para a gente iria ficar buracos e as riquezas iriam ser levadas, embora ainda seja desafiador lutar no cenário atual”. 

A falta de democratização da informação sobre a importância das Resex Marinhas é um fato, principalmente, quando se trata de territórios amazônicos. Fabrícia Nogueira da Penha, atual representante da Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SEMMA) do município de Augusto Corrêa, onde se localiza a Resex Mar de Araí-Peroba, comenta que é indispensável “aproximar o cidadão da gestão pública, já que 56% do território municipal é Resex e apenas 5% dos municípios reconhecem a sua existência”. 

A falta de informação e mais pesquisas que ajudem a compreender a dinâmica dos manguezais frente às mudanças climáticas também são preocupantes. “A preocupação como pesquisadores da Amazônia é o déficit de pesquisas na faixa de manguezal comparado com outras regiões. Se conhece muito mais dos mangues do nordeste até o sudeste, embora sejam mais degradados. A pesquisa ainda é negligenciada para os manguezais amazônicos, ocasionando a falta de informação desses manguezais a gente menos sabe”, avalia o pesquisador Adam. 

Comparado com outras regiões no Brasil, a carcinicultura nos manguezais amazônicos ainda está iniciando. “O corte de madeira não é tão acentuado quanto se imagina, ele ainda é um corte seletivo, mas claro, acontece, embora nos manguezais amazônicos o desmatamento para uso de madeira e a carcinicultura não é um problema grave” diz o professor Marcus. Embora não tenha havido grandes perdas de floresta de mangue em território amazônico, as rodovias pavimentadas e não pavimentadas representam um risco silencioso que podem atingir essas florestas em um futuro próximo. “As rodovias não pavimentadas estão em 90% na Amazonia, a três quilômetros do manguezal, isso significa que qualquer um tem acesso a esse manguezal, o caminho está desenhado, basta entrar”, comenta o especialista.  

Conforme apurado nesta reportagem, nenhum dos municípios onde o NGI Bragança está localizado possui um plano de adaptação climática, seja nos níveis municipal ou federal. Todas as fontes consultadas sinalizaram que a ciência deve ser ativada para gerar informação e realizar diagnósticos climáticos para uma melhor compreensão das soluções que podem ser implementadas de forma holística, pensando nas interfaces entre as dimensões ecológica, econômica, social e na saúde pública. Por exemplo, implementar ações de ciência cidadã para monitorar os indicadores do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 13 é reconhecida como de suma relevância. 

Para implementar o ODS 13 de forma efetiva é necessário planejar ações de adaptação climática dos manguezais amazônicos. Para isso, primeiro é importante conhecer através de diagnósticos climáticos o status dos indicadores desse objetivo, já que no NGI Bragança não existem ações concretas como reflete o comentário da chefia. “Sobre o ODS 13 já discorremos exaustivamente na questão”.  No entanto, mesmo no nível municipal, a falta de planos de ação relacionados à implementação e adequação desse objetivo é uma realidade. Mas se reconhece que a ciência pode auxiliar a preencher essas lacunas.

Além disso, implementar a Agenda 2030 nos manguezais amazônicos representa um grande  desafio, já que “é preciso compreender a sua essência e sua aplicação, criar ou participar de espaços de articulação, adotar estratégias, desenvolver lideranças alinhadas com a governança global, realizar alianças que potencializem a disseminação de informação e os processos de cooperação para atuação local”, segundo ressalta  Vanessa Santos, secretária geral-adjunta da Rede Internacional de Promotores ODS Brasil. 

Foto: Indira Eyzaguirre.

Ciência cidadã pode trazer avanços 

A ciência cidadã, por exemplo, pode contribuir no mapeamento de forma participativa dos riscos de desastres, de impactos e de efeitos decorrentes da crise climática. Esse é um importante instrumento e suporte às políticas públicas, como avalia o professor visitante, Allan Yu Iwama, pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pesquisador na área de ciência cidadã. Allan e outros 27 pesquisadores científicos e comunitários realizaram o projeto “Ciência cidadã para comunidades tradicionais do litoral na adaptação às mudanças climáticas: construindo uma rede brasileira de observação”, sendo a Vila do Bonifácio e a Vila dos Pescadores partes da região norte onde esse projeto teve atuação. 

A inovação cívica pode ser também uma solução climática preventiva, como cometa Giulio Carvalho, coordenador de Inovação Cívica na Open Knowledge Brasil, cujo objetivo é engajar as pessoas a partir do acesso à informação, de forma transparente, aproximando povos e coletivos para conhecer suas vivências e saberes. O fortalecimento e a expansão de projetos como o Querido Diário da OK Brasil pode contribuir como uma alternativa de fácil acesso aos dados de mais de 5 mil municípios, onde se inserem os municípios costeiros.   

A educação é sem dúvida a estratégia mais básica e indispensável para enfrentar as mudanças climáticas. Por exemplo, a educação política é relevante para ativar a comunidade e incentivar a participação cidadã, como comenta Natália Sabat, coordenadora da Rede de Lideres Politize, organização que recentemente tem atuado com oficinas dirigidas a jovens, envolvendo Comunicação Não-Violenta e Políticas Públicas na comunidade Araí na Resex Mar de Araí-Peroba, “Quando o assunto é comunidades tradicionais, a educação e o engajamento político se tornam ainda mais importantes pelo o que chamamos de representatividade. É de suma importância que povos originários tenham conhecimento dos seus direitos e deveres para que assim, possam garantir a conservação e desenvolvimentos de suas culturas e tradições, que são tão ricas e relevantes para contar a história e trajetória de toda uma nação”, observa.

A formação de jovens protagonistas com oficinas de capacitação podem ser a solução para multiplicar o conhecimento sobre o mangue, as Resex e as mudanças climáticas. Na região do NGI Bragança se realizam dois grandes projetos que buscam ampliar a visibilidade dessas temáticas: projeto Cuíra, realizado pela RARE do Brasil com parceria do Instituto Mapinguari e o Grupo de Jovens Protetores do Mangue (ProMangue) do projeto Mangues da Amazônia idealizado pelo LAMA/UFPA e a Associação Sarambuí. Segundo a coordenadora do ProMangue, Lanna Costa, esse grupo busca contribuir com a formação jovens mais sensíveis às problemáticas ambientais e capazes de agir com responsabilidade socioambiental no processo de apropriação e uso sustentável dos recursos do manguezal. Para ela, a educação ambiental informal é a saída para popularizar e democratizar o acesso à informação climática, e assim poder efetivar as políticas públicas a partir da participação ativa das comunidades tradicionais. 

Por O Eco

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