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Conservação dos manguezais da Amazônia une cientistas e comunidade local

Do Nordeste do Brasil à Indonésia, manguezais têm sido alvo de assentamentos humanos, estradas e operações agrícolas predatórias. Mas, entre o litoral nordeste do Pará e o Maranhão, essa tendência global encontra um ponto fora da curva: ali, onde o caranguejo-uçá habita tocas profundas e tortuosas, a ação humana não foi capaz de alterar nem 1% dos 379 mil hectares de ecossistema costeiro – a maior porção contínua de manguezal do planeta.

Imagens de satélite coletadas por um estudo do Laboratório de Ecologia de Manguezal (LAMA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), explicam o porquê de tamanha conservação. Enquanto 40% das regiões costeiras do Nordeste e Sudeste são povoadas, apenas 8% da população paraense vive nos entornos das zonas de mangue. De acordo com a análise, os poucos registros de degradação desse ecossistema na costa amazônica coincidem com os lugares onde há maior concentração de moradias: Salgado, no Pará; as microrregiões do litoral oeste do Maranhão e a aglomeração urbana da capital do estado, São Luís.

Da árvore popularmente conhecida como mangue branco (Laguncularia racemosa), a população dessas áreas costuma extrair galhos para fazer curral de pesca ou lenha. Ali, os manguezais também são uma importante fonte de renda e segurança alimentar aos moradores que, diariamente, capturam centenas de caranguejos-uçá a fim de vendê-los aos restaurantes da região ou trazê-los à mesa de suas próprias famílias: são os chamados “caranguejeiros”.

Mas, ao contrário do que acontece em outras partes do Brasil, o impacto dessas atividades é relativamente baixo se comparado à vastidão dos manguezais da costa amazônica, onde se encontra 80% desse ecossistema no país. “Na costa leste da Amazônia, foi encontrado um total de 1648 ocorrências de uso da terra de mangue, ocupando uma área total de 67,11 quilômetros quadrados. Isso é aproximadamente apenas 1% da área de estudo”, diz a pesquisa do LAMA, publicada no periódico Plos One em 2019.

Mangues da Amazônia

Ainda assim, desde janeiro deste ano, a área que nasce do encontro do mar com rios como o Amazonas virou alvo de um novo projeto socioambiental – o Mangues da Amazônia. Isso porque, apesar de estar em bom estado de conservação, moradores já começaram a observar a redução de caranguejos-uçá em pontos de maior exploração. “A ideia é usar exemplos de impactos negativos que existem aqui como uma forma de aprendizado para o que não se deve fazer, quase como que dizendo ‘se isso acontecer em grande escala, a gente está lascado’”, explica à GALILEU Marcus Barroncas Fernandes, coordenador do LAMA e pesquisador do projeto.

Manguezais são uma importante fonte de renda e segurança alimentar aos moradores que, diariamente, capturam centenas de caranguejos-uçá (Foto: Rafael Araújo/Instituto Peabiru/Divulgação)
Manguezais são uma importante fonte de renda e segurança alimentar aos moradores que, diariamente, capturam centenas de caranguejos-uçá (Foto: Rafael Araújo/Instituto Peabiru/Divulgação)

A iniciativa do laboratório da UFPA em parceria com o Instituto Peabiru e a Associação Sarambuí conta ainda com o patrocínio do Programa Petrobras Socioambiental. Apesar de parecer pequena se comparada aos 379 mil hectares de mangue da costa amazônica, a meta do projeto não é das mais simples: recuperar 12 hectares de manguezais degradados nas reservas extrativistas Caeté-Taperaçu, Araí-Peroba e Tracuateua, todas no Pará.

Ao longo de dois anos, cerca de 30 pesquisadores do LAMA se juntarão às comunidades locais para mapear áreas de replantio de árvores e elaborar regras de manejo do caranguejo-uçá. “Queremos juntar nosso conhecimento técnico com a sabedoria tradicional dos moradores e, assim, chegar a um acordo que vai ser benéfico para todos”, diz Fernandes. “Isso só é executável se for de base comunitária, não dá para fazer sem os moradores”, acrescenta o especialista em manguezal.

Preservando a espécie

Atentos à importância da fêmea no processo reprodutivo do caranguejo, os moradores da região costumam obedecer à uma regra que é transmitida de geração a geração: na busca pelo animal, só o macho deve ser capturado. Além disso, é comum que os caranguejeiros alternem os locais de captura dos artrópodes – e também do mangue branco.

Por outro lado, segundo Marcus, algumas práticas adotadas a nível local podem estar ameaçando não só os manguezais, mas a subsistência da população a longo prazo – a exemplo da captura excessiva de caranguejos maiores. Isso porque, apesar de ter um potencial reprodutivo consideravelmente alto, o animal só atinge o tamanho comercial – a partir dos 6 centímetros – entre 6 e 11 anos de idade. “Se você pega milhares desse tamanho [grande] todos os dias, você está jogando muito para frente o tempo dos outros crescerem e, daqui a um tempo, nessas áreas de maior exploração os grandes serão escassos”, explica o pesquisador.

Ao longo de dois anos, cerca de 30 pesquisadores do LAMA se juntarão às comunidades locais para mapear áreas de replantio de árvores e elaborar regras de manejo do caranguejo-uçá (Foto: Rafael Araújo/Instituto Peabiru/Divulgação)
Ao longo de dois anos, cerca de 30 pesquisadores do LAMA se juntarão às comunidades locais para mapear áreas de replantio de árvores e elaborar regras de manejo do caranguejo-uçá (Foto: Rafael Araújo/Instituto Peabiru/Divulgação)

Com o projeto socioambiental, pesquisadores esperam incentivar o retorno desses animais às áreas degradadas, mas também a restauração de uma das principais funções ecossistêmicas do mangue: a estocagem de carbono. Ao filtrar a água, a lama característica dessas zonas úmidas soterra toneladas de sedimentos trazidos pelo rio, o que faz desse ecossistema um aliado no combate aos efeitos do aquecimento global – e um protetor das áreas costeiras contra eventos erosivos.

No meio do caminho, havia uma rodovia

Aos olhos de quem percorre a rodovia PA-458, no município de Bragança, um questionamento excede em volume os caranguejos-uçá: por que o lado direito tem à seu favor um manguezal vivo, com árvores exuberantes de pé, e o lado esquerdo se assemelha mais à um “bosque anão” – como descreve Fernandes? Para chegar à resposta, é preciso voltar à década de 1970, quando a PA-458 aterrou 26 quilômetros de manguezal a fim de conectar o município paraense à praia de Ajuruteua, um ponto de turismo que anualmente atrai centenas de moradores de Belém e cidades vizinhas.

Pavimentada em 2018, a rodovia interrompeu o fluxo de água do Rio Caeté, que costumava irrigar a região. O fato, desconsiderado pelas autoridades da época, levou à morte de ao menos 90 hectares de manguezal, segundo o coordenador do LAMA, e deixou rastros de destruição que perduram até hoje – como a escassez progressiva dos caranguejos. “Hoje, temos ali uma cobertura vegetal mínima, que são árvores-arbustos, porque só recebem água quando chove. Aos poucos, vão virar um bosque anão, esse é o novo manguezal dali”, avalia Fernandes, que trabalha com iniciativas de recuperação do ecossistema desde 2005.

Junto a organizações não-governamentais, o pesquisador já tentou promover o replantio de árvores no local, mas considera que, enquanto a área estiver salinizada e galerias pluviais não forem instaladas pelo poder público – o que permitiria o retorno da irrigação natural –, esses esforços se resumirão em “jogar semente fora”.

O projeto deve beneficiar cerca de 7.600 pessoas que dependem diretamente das reservas extrativistas dessas cidades (Foto: San Marcelo/Divulgação)
O projeto deve beneficiar cerca de 7.600 pessoas que dependem diretamente das reservas extrativistas dessas cidades (Foto: San Marcelo/Divulgação)

Por isso, são poucos os pontos do lado esquerdo da rodovia de Bragança que serão alvo das 60 mil mudas do projeto Mangues da Amazônia – as tentativas se limitarão às microrregiões onde ainda existem pequenos canais de água se movendo, que são provenientes do Rio Taperaçu. Com construção de viveiro e monitoramento, a iniciativa pretende replantar nas três reservas extrativistas paraenses as espécies de árvores dominantes do mangue: o mangue vermelho (Rhizophora mangle), preto (Avicennia germinans) e branco (Laguncularia racemosa).

O projeto deve beneficiar cerca de 7.600 pessoas que dependem diretamente dessas reservas. Em meio à pandemia de Covid-19, reunir a comunidade para o replantio comunitário tem sido um desafio, mas a equipe espera conseguir pôr em prática ações educativas mais amplas à medida que o programa de vacinação nacional avançar.

“São ações preventivas, de manutenção do que já existe, e isso não é menos importante do que remediar”, diz Fernandes. “Muito pelo contrário, acho que é muito mais importante atuar nessa linha do que atuar na linha de remediação. Será que vou ter que esperar a Amazônia toda ser destruída para eu correr atrás? Essa não é a melhor forma de abordar o problema quando temos na nossa frente uma forma de deixar a área mais preservada do que já está”, afirma.

Para Fernandes, ainda, um fator é crucial para a manutenção dos resultados que serão alcançados pelo projeto: a continuidade. Dois anos, diz o pesquisador, corresponde a um intervalo de tempo relativamente curto para um programa desse cunho – é, no entanto, o que propõe o financiamento disponível.

*Com supervisão de Larissa Lopes

Por Revista Galileu

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