Cerrado brasileiro recebe pouca atenção em estudos sobre recomposição de vegetação nativa, revela estudo da ONU
SÃO PAULO — Último remanescente de cerrado na Grande São Paulo, o Parque do Juquery, uma área de proteção integral, foi devastado pelo fogo que destruiu 80% de sua área com esse tipo de vegetação nativa em agosto. Com desafios de proteção, biomas classificados como “abertos”, que além do cerrado incluem outros tipos de savana, caatinga e áreas úmidas, aparecem sub-representados nas políticas de recomposição.
A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou o período 2021 a 2030 como a “Década da Restauração de Ecossistemas” para promover a proteção da biodiversidade, dos povos locais e do clima. O foco da iniciativa, porém, está muito concentrado nas florestas, dizem cientistas.
Um levantamento mostra que, apesar de ecossistemas abertos ocuparem 39% da região tropical do planeta, apenas 9% dos estudos sobre recomposição vegetal são voltados para essas áreas. Florestas secas ou úmidas, por outro lado, representam 43% das áreas, mas receberam 85% da atenção. O restante da porcentagem é de áreas pantanosas e outras classes de ecossistema.
O trabalho, liderado pelo ecólogo Fernando Silveira, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), atribui o fenômeno ao que batizou com a sigla BAD, do inglês “biome awareness disparity” (disparidade de consciência sobre biomas).
No Brasil, esse desequilíbrio é menos acentuado, porque a floresta amazônica ocupa metade do território do país, mas o cerrado e a caatinga abrangem 24% e 10%, fatias não desprezíveis. A preservação de florestas, dizem os cientistas, é essencial, mas escantear outros biomas não é bom.
“O plantio de árvores e a silvicultura estão sendo bastante implementados em biomas abertos de países da África Subsaariana, da Índia, da China e do Brasil, apesar de repetidos avisos e robusta evidência das consequências disso para serviços ambientais, conservação da biodiversidade e subsistência humana”, escrevem os cientistas.
Árvores inadequadas
Segundo eles, o foco em plantio de árvores, em alguns casos, deriva de um enfraquecimento da força desses países para preservar as florestas nos lugares onde elas de fato são naturais. O florestamento de áreas não adequadas para tal pode ser prejudicial até mesmo para a captura de CO2 da atmosfera, que ajuda a combater o aquecimento global.
Plantações de árvores podem resultar em uma redução do sequestro líquido de carbono em relação ao que era possível com a cobertura vegetal anterior, como campos e turfeiras. O estudo de Silveira e outros 13 coautores descreve os efeitos do problema de a década da restauração estar reservando pouco espaço para biomas não-florestais. O trabalho foi publicado na revista científica “Journal of Applied Ecology”.
Os cientistas esclarecem, entretanto, que objetivo do estudo não é reduzir o incentivo para a preservação de florestas tropicais, que hoje estão reduzindo de área no planeta e sofrem também com políticas ambientais predatórias adotadas em muitos países.
— Não é que as florestas devam receber menos atenção — alerta Lívia Moura, pesquisadora do programa de Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza, ONG que promove economia sustentável em comunidades tradicionais. — A gente defende que a proteção dos biomas abertos pode ajudar na conservação da biodiversidade como um todo, com uma dinâmica mais eficiente do que o foco num bioma só.
Para avaliar a iniciativa na Década da Restauração, Moura e Silveira analisaram não apenas a literatura científica, mas vasculharam as redes sociais para ver como estão se comportando as ONGs e instituições parceiras da ONU no projeto. Para medir a extensão do desequilíbrio, analisaram 50 mil postagens de Twitter dessas entidades sobre restauração para identificar o quanto elas concentravam seu discurso em florestas, além de 45 mil postagens de veículos de mídia sobre o tema.
O resultado é que o número de tuítes sobre florestas foi quase dez vezes maior que aqueles sobre ecossistemas abertos, apesar de os dois tipos de bioma terem uma área parecida no domínio tropical e subtropical.
Floresta invertida
Segundo Moura, o reconhecimento da vegetação nativa não-florestal para o combate à crise do clima é importante também no Brasil, e políticas públicas de restauração precisam levar em conta que esses ecossistemas têm de ser recompostos com espécies nativas.
— A regeneração de ecossistemas abertos como savanas ou campos conta com plantas rasteiras, herbáceas e arbustivas, que são de crescimento rápido e também têm uma demanda por carbono. A noção de que o Cerrado possui pouca biomassa, por exemplo, é equivocada — afirma a cientista. A gente defende que o cerrado é como uma floresta “invertida”, porque abriga plantas de raízes enormes, que precisam acumular biomassa para se compor e também acabam criando um reservatório de carbono, só que para o lado de baixo do solo.
De acordo com os cientistas, para atenuar a disparidade de atenção dada aos diferentes biomas, é preciso atuar nas frentes de educação e comunicação, além de ampliar trabalhos de mapeamento, estudos e os programas públicos de restauração em si.
Por O Globo
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