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Corais detetives revelam um século de mudanças ambientais em Abrolhos

Nos chamados “anos loucos” da década de 1920, Tarsila do Amaral e a trupe modernista revolucionavam a forma como os brasileiros enxergam a si mesmos e ao seu país, que começava a se industrializar e se transformava profundamente. Jamais seríamos os mesmos! Sem alarde, naquele momento, duas pequenas larvas de corais se fixavam nos recifes de Abrolhos e iniciavam seu longo e lento crescimento, depositando finas camadas de carbonato de cálcio em seus esqueletos. Monitoramento ambiental? Nenhum, nem em terra, nem no mar. Dados ambientais mais robustos e contínuos só mesmo nas últimas duas ou três décadas, com o avanço das tecnologias espaciais e iniciativas como o PELD, o Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração, financiado pelo CNPq desde 1999 com o objetivo de subsidiar a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento sustentável.

Porém, enquanto a República do Café com Leite dava lugar à Era Vargas nos anos 1930, o mundo guerreava na década de 1940, os humanos alcançavam o espaço nos anos 1960, e as florestas do sul da Bahia eram devastadas a partir da década de 1970, os dois corais de Abrolhos registravam as mudanças na zona costeira e na atmosfera. A região, quase pristina quando as duas larvinhas de coral ali chegaram, foi sendo dominada pela monocultura do eucalipto, cidades e portos, e hoje é marcada por um canal de dragagem que entope os recifes costeiros de sedimentos. Quase um século depois, não temos mais testemunhas (humanas!) dos acontecimentos, tampouco registros instrumentais do que acontecia com a atmosfera e com os ecossistemas. A concentração de metano e CO₂ na atmosfera aumentou aproximadamente 150% e 40%, respectivamente, e o clima jamais será o mesmo.

Apesar dessa falta de dados de monitoramento, temos começado a “ler” uma parte não contatada da história ambiental graças às bandas de crescimento dos esqueletos dos corais, que funcionam como anéis de uma árvore, registrando as variações climáticas e os efeitos das atividades humanas. São os chamados detetives ecológicos, que já ajudaram a revelar o impacto do rompimento da barragem de Fundão (Mariana, MG) sobre os recifes de Abrolhos, e agora nos permitem rastrear a variabilidade no clima e nas condições do oceano. Em um estudo publicado essa semana na revista científica Estuarine, Coastal and Shelf Science, nosso grupo, composto por pesquisadores das Universidades Federais do Rio de Janeiro e Espirito Santo, PUC Rio, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e duas instituições alemãs, apresentou os registros mais longos já recuperados de bandas de corais brasileiros, entre 1926 e 2015. O estudo abrangeu uma colônia que cresceu sob maior turbidez, próxima da costa, e outra que se desenvolveu sob menor influência da costa, no Parcel dos Abrolhos, hoje protegido pelo primeiro Parque Nacional Marinho brasileiro. Cada camada de calcificação dos corais, de espessura milimétrica, funcionou como uma cápsula do tempo, revelando efeitos da temperatura da água, da turbidez e até de eventos climáticos globais.

O nosso estudo revelou que o coral costeiro cresceu um pouco mais rápido e foi fortemente influenciado pela temperatura (que reduziu o crescimento) e pela turbidez (que, até certo nível, favoreceu seu desenvolvimento). Já o coral que cresceu na área mais afastada da costa não mostrou uma associação tão clara com esses fatores. E as diferenças não pararam aí: colônias costeiras apresentaram pólipos menores e esqueletos mais densos, adaptações que podem ajudar a sobreviver em águas carregadas de sedimentos. Até o poderoso El Niño de 1997–1998, que não foi monitorado in situ, deixou sua marca: fortes impactos nos recifes costeiros, seguidos de uma recuperação rápida no ano seguinte.O estudo também revelou que os corais não guardam apenas a memória de eventos pontuais, mas também das grandes oscilações climáticas globais que moldam o clima do planeta.Por exemplo, o coral dos recifes costeiros respondeu à Oscilação Multidecadal do Atlântico (AMO), um ciclo de aquecimento e resfriamento do Atlântico que dura de 60 a 80 anos e influencia as chuvas no Nordeste, e à Oscilação Antártica (SAM), que altera a circulação de ventos e massas de ar no Hemisfério Sul. Já o crescimento do coral na área mais afastada da costa mostrou maior relação com o El Niño, evento periódico que aquece o Pacífico oriental e causa efeitos em todo o planeta, incluindo secas no Nordeste e chuvas extremas no Sul do Brasil. Essas assinaturas aparecem emciclos curtos, de 2 a 3 anos (como o El Niño/La Niña), e também em ciclos longos, de 15 a 22 anos, todos gravados nos esqueletos, como páginas de um diário natural.

As descobertas sugerem que, sob certas condições, a turbidez pode oferecer proteção parcial contra o branqueamento, mas essa vantagem tem limites, especialmente em verões mais quentes. A maior tolerância à turbidez, apresentada pelos corais de Abrolhos, não os torna imunes às ondas de calor marinhas cada vez mais intensas, tampouco ao carreamento cada vez mais vigoroso de sedimentos. Além de trazer à tona a história não escrita do oceano, nosso trabalho oferece pistas essenciais para o futuro dos recifes coralíneos brasileiros. Compreender seus limites de tolerância diante das mudanças climáticas é crucial para preservar não só a biodiversidade, mas também os serviços ecológicos e econômicos que sustentam milhares de pessoas, garantindo bilhões de reais por ano em turismo e proteção costeira.

Por O Eco
Foto: R. L. Moura

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