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Uma floresta em equilíbrio

No município de Tomé-Açu, nordeste do Pará, a explicação de um agricultor japonês sobre o porquê de ter mantido metade da propriedade como floresta tropical nativa criou uma memória afetiva para o pesquisador Osvaldo Kato: ele queria que as gerações seguintes de sua família conhecessem como era, de fato, uma floresta como a escolhida pelos antepassados para fincar raízes no Brasil.

Na outra metade da área, espécies nativas de árvores frutíferas, verduras, legumes e ervas medicinais se mesclam com as que foram trazidas de outros estados e regiões do país. “Tudo junto e misturado, no jargão das gerações mais jovens do agricultor, há colheita o ano todo.

No mesmo estado, a agricultora familiar Teofila da Silva Nunes, 68, assentada do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), fez do lote onde cultiva uma extensa variedade de espécies – nativas e não nativas – sua razão de vida, especialmente depois do assassinato do marido, há sete anos. É no “Lapo” (lote agroecológico de produção orgânica), nome como ele batizou a terra do casal, que ela alterna floresta, frutas, verduras e ervas sem o uso de qualquer tipo de defensivo ou insumo – a biodiversidade local é preservada e estimulada à base de derivados da própria terra.

No Acre, próximo à divisa com o Peru, o agente agroflorestal Yube Hunikuin, 38, concilia a tradição secular de seu povo —a tribo dos Hunikuin, mais numerosa do estado —com as técnicas de manejo alternado do solo, mesclando agricultura e preservação. A finalidade: garantir vida à terra, e, por tabela, a eles próprios. “Sem terra, não temos vida: é nela que plantamos, nela que caçamos, é de onde extraímos a nossa medicina e onde cultivamos a nossa ancestralidade. A terra é nossa mãe, e não nos cabe tirar dela o que tem de valor sem dar nada em troca”, defende.

Embora com experiências de vida distintas, o agricultor que sensibilizou o cientista em Tomé Açu, a lavradora do MST que buscou expandir o legado pensado por ela e pelo marido em um pequeno lote de terra e o indígena que hoje é agente educador na própria tribo têm em comum uma forma de manejo que mostra que florestas e lavouras podem conviver harmonicamente – mesmo, ou sobretudo, em uma região sob crescente ameaça ambiental como a Amazônia.

Mais do que harmonia, as agroflorestas, ou sistemas agroflorestais (SAFs), têm provado que o desenvolvimento da Amazônia e do Brasil não precisa estar atrelado à perda da floresta e que é possível, sim, explorar o meio ambiente de maneira sustentável, uma vez que o sistema promove uma melhora na qualidade da água e do solo, aumenta a biodiversidade e ainda contribui para o sequestro de carbono, reduzindo os efeitos da crise climática.

O desafio, avaliam adeptos e estudiosos da modalidade, é uma implementação em larga escala capaz de frear, ou, pelo menos, fazer frente ao desmatamento da região – o qual, em 2020, parece insistir em quebrar recordes negativos, mesmo sob pandemia.

Esse texto faz parte de uma série de reportagens especiais para celebrar o Dia da Amazônia, comemorado em 5 de setembro. Ao longo da semana, Ecoa mostrará alternativas para a exploração sustentável de um dos principais ativos nacionais e reunirá especialistas para discutir como garantir não apenas sua conservação, mas caminhos para a regeneração do desmatamento constante que a região vem enfrentando.

As agroflorestas e suas vantagens

A discussão sobre sustentabilidade passa essencialmente por alternativas economicamente viáveis para fazer frente ao desmatamento. Nesse contexto, o sistema de conservação por agroflorestas emerge como exemplo que agrega benefícios tanto ao agricultor quanto ao meio ambiente.

O SAF, na prática, se trata de um conjunto de técnicas que reúne agricultura e preservação ou recomposição ecológica e que se vale da dinâmica de sucessão de espécies da flora nativa para trazer aquelas que agregam benefícios ao terreno, além de mais produtos a quem cultiva.

A implementação desses sistemas também integra um dos sete programas do Plano ABC – Agricultura de Baixa Emissão de Carbono do Ministério da Agricultura, conjunto de ações cuja meta é reduzir as emissões de gases do efeito estufa (GEE) e frear o aumento da temperatura global. No Brasil, 25% das emissões de gases de efeito estufa (GEE) advêm da agropecuária; outros 21%, da produção de energia.

Na região amazônica, a expansão dos modelos agroflorestais tem ocorrido em diferentes pontos dos estados que a compõem e se mostrado uma alternativa rentável – a ponto de modelos implementados no pequeno município de Tomé-Açu por imigrantes japoneses, na primeira metade do século passado, por exemplo, terem sido adotados por agricultores também de outras regiões do Brasil nas últimas décadas.

No caso da Amazônia, por excelência, por si própria já uma área de biodiversidade acima da média mundial, a alternância de diferentes culturas em áreas de floresta tem sido possível também graças ao intercâmbio entre conhecimentos advindos da pesquisa e da academia e os conhecimentos seculares de povos nativos, sejam eles ribeirinhos, indígenas ou camponeses assentados oriundos dali e de outras regiões.

Considerado um dos principais especialistas em Amazônia e em mudanças climáticas do Brasil, o climatologista Carlos Nobre já havia afirmado mês passado, a Ecoa, sobre as vantagens de se manter a floresta amazônica de pé: “De cada hectare de floresta que desaparece na Amazônia, falamos de 400 a 500 toneladas de gás carbônico que entram na atmosfera. Se você tem uma bioeconomia de floresta em pé, não desmata, ao contrário: você pega áreas desmatadas de floresta e as regenera, tirando gás carbônico da atmosfera. É um serviço enorme prestado ao meio ambiente”, definiu Nobre, para quem modelos como as agroflorestas não apenas ajudam a neutralizar as emissões de carbono na atmosfera, como aumentam a fertilidade do solo e diminuem os extremos climáticos. Ana Melgaço Ana Melgaço

Redução de desigualdades e outra matriz de consumo

Para o diretor de conservação e restauração de ecossistemas do WWF-Brasil, Edegar Oliveira, os problemas nessas duas searas, em relação a grandes áreas de vegetação no Brasil, como Amazônia e Cerrado, dizem respeito a um modelo de desenvolvimento ainda fortemente baseado na expansão de commodities – como boi gordo e soja, modelos extensivos de produção.

“O impacto ambiental desse modelo chega a retroalimentar até mesmo o problema da produção dele, assim como a de alimentos, embora seja nele onde estejam pesquisa, fluxo financeiro e os anseios de parte das populações locais”, avalia Oliveira, que critica ainda o sistema pouco inclusivo e concentrador de renda que marcam esse tipo de produção.

Na avaliação dele, os SAFs representam um “modelo de desenvolvimento totalmente diferente” dos sistemas extensivos e de monocultura à medida que vêm mostrando ser “possível gerar riqueza econômica, social e ambiental”.

“Com as agroflorestas, aumentam o número de produtos, a receita, a arrecadação de impostos, o número de empregos e a circulação de renda na região, o que causa uma verdadeira transformação nessas áreas”, pondera. “Sem contar que estamos alimentando o consumo de carne de boi, ou do que alimentará gado em qualquer lugar do mundo, de modo que precisamos repensar esse modelo de padrão alimentar”, completa.

Ele conclui: “Esse modelo de desenvolvimento foi importante, mas os dados mostram que não é mais necessário e que temos, no Brasil, a possibilidade de pensar um modelo de desenvolvimento completamente diferente, mais inclusivo à própria economia da floresta.”

Temos essa riqueza no ecossistema brasileiro, mas não a utilizamos — e ainda estamos jogando isso fora para fazer uma grande área de soja ou de produção de carne.

Edegar Oliveira, diretor de conservação e restauração de ecossistemas do WWF-Brasil

Arquivo pessoal

Modelo anima até pequisador tradicional

Ouvir o que os pesquisadores de sistemas agroflorestais têm a dizer sobre a adoção desse modelo na região amazônica do Brasil é também, em certa medida, imergir na história recente da floresta mais biodiversa do mundo.

Embora os SAFs sejam uma denominação técnica mais nova, há quem defenda que eles são desdobramentos maiores e mais complexos dos quintais urbanos, de tradição secular e ainda muito comuns nos estados amazônicos. Pressionados pela especulação imobiliária e pelo aumento demográfico, os quintais têm perdido espaço nas capitais, mas persistem em cidades do interior e avançam nas áreas metropolitanas, até como garantia de subsistência e de conservação de tradições culturais das famílias.

“A expressão ‘SAF’ talvez seja nova, mas o uso desses sistemas na região amazônica é muito antigo: indígenas já os praticavam, caboclos, ribeirinhos, caiçaras; e é um modelo que se adequa muito bem, tanto que indígenas, ao praticarem suas roças na floresta, aproveitavam as próprias clareiras naturais para os seus roçados biodiversos”, explica o professor Breno Rayol, da Ufra (Universidade Federal Rural da Amazônia).

Rayol, que é doutor em biodiversidade e biotecnologia, explica que a tradição local levou à formação de quintais de autoconsumo, espaço de lazer, de reunião da família aos domingos, e de religiosidade das famílias, já que várias das religiões de matrizes africanas se valem do cultivo de plantas místicas.

“A biodiversidade nas cidades ainda está vinculada a esses quintais agroflorestais – nos quais cada família cultiva espécies de acordo com seu hábito, sua cultura, além de toda a questão ornamental que envolve também a religiosidade”, explica o pesquisador, para quem os quintais serviram como “porta de entrada de outros sistemas agroflorestais, mais complexos”, nas propriedades.

“Mesmo nos quintais urbanos, observamos que eles dialogam com os rurais: já vi vários casos na região de Santarém [PA], por exemplo, em que o jovem vai fazer faculdade, e os pais moram em uma região rural, mas ele leva muda de fruta da família para plantar – essa troca de material genético entre o urbano e o rural acontece; os quintais têm esse potencial”, complementa.

Além disso, ele destaca, o incentivo a um sistema de cultivo que mescla a floresta com espécies variadas de culturas anuais também ajuda a diminuir a pressão sobre produtos das florestas nativas, defende o professor, para além de contribuírem à proteção de rios e solo.

O professor da Ufra, em Belém, se denomina um entusiasta dos SAFs. E aposta na troca de conhecimento entre a pesquisa científica, a universidade e o produtor familiar para expandir o “potencial muito grande” desses modelos.
“Sei que as coisas estão melhorando ainda aos poucos, mas acredito que isso pode ser expandido aproveitando as brechas: temos muito a aprender nessa troca de conhecimento entre a academia e o produtor familiar; eles têm um conhecimento enorme, e nós temos de aproveitá-lo e entrar com ações em um conjunto, e não como em um pacote tecnológico”. Renato Gavazzi Renato Gavazzi

Tomé-Açu (PA): exploração comercial irradiou para o país

A troca de conhecimentos entre pesquisa científica e a cultura local também é uma tática adotada por pesquisadores da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) Amazônia Oriental, sediada em Belém. A unidade conta com programas em parceria com a UFPA (Universidade Federal do Pará) e a Ufra por meio dos quais são desenvolvidas atividades de campo, com estudantes e professores, nas regiões de agroflorestas de Tomé-Açu, no noroeste do estado.

É de Tomé-Açu, por sinal, o modelo mais antigo de exploração comercial dos SAFs e que acabou servindo de base para outras regiões do país, para além dos quintais agroflorestais que já eram tradição na região amazônica, mas com fins mais domésticos. Quem afirma é o pesquisador Osvaldo Kato, pesquisador da Embrapa e doutor em agricultura tropical, neto dos primeiros imigrantes japoneses que desembarcaram no estado no final dos anos 1920.

A ideia inicial era cultivar uma espécie perene e nativa da floresta amazônica para se juntar ao cultivo de hortaliças e arroz, espécies com as quais os japoneses já estavam familiarizados. Criaram a Camta (Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu) para auxiliar no desenvolvimento das ações, mas esbarraram na experiência do cacau pela falta de conhecimentos técnicos em lidar com o produto.
Kato explica que, a partir de 1933, os imigrantes optaram pelas lavouras e melhoria da pimenta do reino, produto que atingiu o ápice de preços após a segunda Guerra Mundial (1939-1945) e chegou a ser chamado de “diamante negro”. Tomé-Açu, já naquele tempo, se tornaria a capital nacional da pimenta do reino. Por outro lado, isso incentivou a criação de vastos campos de monocultura que, nos anos 1960, sofreram um duro baque face a um ataque de fusariose – uma doença do solo causada por fungos e que, atacando as raízes e de espalhando depois também pelo vento, passou a prejudicar substancialmente o desenvolvimento da planta e a lucratividade dos produtores. Nessas alturas, para piorar a situação do produto nacional, os mercados da Ásia já haviam recuperado a produção da pimenta.

“Aí é que os imigrantes começaram a diversificação – o que veio muito, também, da observação do que é a nossa floresta, da produção dos ribeirinhos… Os sistemas agroflorestais foram então implementados visando a questão econômica”, conta o pesquisador.

Nas aulas em parceria com a UFPA e a Ufra, e também na capacitação de profissionais – são cerca de 1000 capacitados ao ano —, são trabalhados os SAFs e as agroecologias, sistemas de produção essencialmente orgânicos. “Vamos junto com os alunos a esses sistemas, o que potencializa muito a formação de pessoas e multiplicadores dessa modalidade de cultivo. Com isso, incluímos nas aulas essa questão do ver para crer, em uma semana com alunos e agricultores – o SAF na região só está evoluído porque trabalhamos com as coisas que eles estão fazendo em Tomé Açu: aliamos a pesquisa por mais produtividade, de genética, tolerância a pragas, melhoria do solo, com os conhecimentos do agricultor, expressados nas culturas dele de domínio, ou seja, daquilo que ele já sabe fazer”.

Nesse sentido, diz o pesquisador, os SAFs locais conciliam espécies florestais e frutíferas com outras, anuais, às quais a maioria dos agricultores familiares já estão acostumados – como arroz, feijão, milho, mandioca, banana e maracujá, por exemplo. Dessa forma, há produção o ano todo – mesmo durante os três a cinco anos iniciais necessários para que a floresta comece a ganhar corpo.
No caso da região amazônica, explica Kato, o aumento do valor comercial de produtos nativos tem aumentado as possibilidades para as agroflorestas na região.

“Pensando diretamente no produtor e na agroindústria, isso significa trabalho e alimento o ano todo. Pensando no meio ambiente, esse é um sistema que vai melhorando a qualidade do solo porque naturalmente está acumulando carbono nele – os agricultores são incentivados, por exemplo, a usarem a biomassa da vegetação secundária em vez de fazer fogo. Só com isso, se deixa de emitir o equivalente a cinco vezes menos carbono, na forma de gás carbônico, na atmosfera”, diz. “É um processo lento e que se incorpora no solo, mas como a Amazônia é quente e úmida, isso acaba sendo muito rápido e gerando uma matéria orgânica que aumenta a atividade biológica, pois a flora é diversificada – e a fauna do solo também aumenta, em uma diversidade de insetos que vem junto”, complementa Kato, que constata: “Com isso, o sistema vai entrando em equilíbrio, como existe na natureza, e a chance de haver doenças é muito menor: melhora-se a parte física, química e biológica do solo, graças a essa ciclagem da matéria orgânica”.

Divulgação/Embrapa

SAFs substituíram a monocultura de pimenta do reino

Tomé-Açu ainda produz pimenta do reino, mas com um ciclo de vida menor que o décadas passadas. No final da década de 1970 e começo da de 1980, a transformação foi implementada de vez, e as monoculturas, substituídas pelos SAFs. A cooperativa tem assistência técnica própria, o que, relata o pesquisador, facilitou o processo de adaptação aos novos tempos.

“Isso tem feito o modelo de Tomé-Açu ser irradiado pelo Brasil inteiro; claro que os SFAs já vinham sendo trabalhados em outras regiões, mas não na escala do eu acontece em Tomé. A valorização de produtos da Amazônia, sobretudo cupuaçu e cacau, que antes o pessoal não conseguia vender, era praticamente trocado, nas feiras, contribuiu para esse crescimento”, define o pesquisador.

À exceção de Tomé-Açu, onde são cerca de 20 mil hectares de agroflorestas plantadas, a Embrapa não tem hoje uma estimativa de quantos hectares de SAFs existem hoje na região amazônica. “A ideia é trabalhar algum sistema usando imagem de satélite, voltada especificamente a isso, porque ainda não temos uma metodologia que consiga separar os SAFs das capoeiras”, relatou Kato.
Neto de imigrantes japoneses, o pesquisador da Embrapa diz que não se deixar abater pelo aumento da devastação na maior floresta tropical do mundo.

“Meu sentimento particular é o de que tivemos um avanço muito grande em modelos sustentáveis na região nesses últimos anos. Eu tive a oportunidade de vivenciar isso; a consciência muda. A biodiversidade da floresta é imensa e ainda muito desconhecida, ainda temos muito o que fazer em termos de bioeconomia, mas isso é algo com uma perspectiva imensa para o futuro. Só espero que o outro lado [que desmata] não corra e uma velocidade muito grande.”

Proteger Amazônia é preservar as chuvas no restante do país

Além do aumento de qualidade do solo e da biodiversidade, também as pesquisas sobre regulação climática podem ter impacto positivo de modalidades de manejo como o SAF.

Sobre isso, o diretor de conservação e restauração de ecossistemas do WWF-Brasil, Edegar Oliveira, lembra que é da região amazônica a capacidade de fazer a ciclagem de água no país, ou seja, de capturar água do meio ambiente e alimentar outras áreas do país com chuva -em um caminho que perpassa o oceano Atlântico, a atmosfera e a distribuição disso para o Centro-Oeste e o Sudeste, por exemplo.

“A regulação climática está estritamente ligada à capacidade da Amazônia em fazer a ciclagem da água, e temos estudos mostrando que há menos água circulando na região”, afirma Oliveira. Ele constata: preservar o território amazônico, nessa perspectiva, portanto, também é fundamental para preservar a capacidade de produção agrícola no Centro-Oeste e Sudeste do Brasil. “Os sistemas de produção por agroflorestas são um modelo de desenvolvimento econômico conciliados com a preservação da floresta”, analisa.

Arquivo pessoal

Reforma agrária e o modelo agroflorestal

Pensar em novas formas de manejar o solo é pensar também em formas menos desiguais de ocupar a terra. Por formas menos desiguais, entenda-se: menos latifúndios, mais propriedades de menor porte e mais gente envolvida na manutenção delas – especialmente com o conceito de soberania alimentar permeando toda essa atividade.

A avaliação é de representantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) no estado do Pará, pioneiro, na região amazônica, na conversão dos tradicionais quintais agroflorestais para os sistemas de agroflorestal propriamente ditos.

A produção de assentamentos e acampamentos do MST integra a chamada agricultura familiar, realizada em propriedades de menor porte e responsável por 70% do que chega à mesa do brasileiro.

Implementar uma reforma agrária na região amazônica, defende o movimento, é reduzir a concentração de latifúndios nos quais a monocultura -sobretudo de commodities para exportação – não só ainda é realidade, como representa, não raro, um risco à biodiversidade local e a um modelo socioeconômico capaz de reduzir desigualdades.

“O SAF é um novo olhar sobre a terra, uma vez que é um manejo mais fácil de implementar com o pequeno agricultor do que em latifúndio de 5 mil hectares. E é preciso ter várias agroflorestas pequenas por família para haver uma escala – uma família produzindo 100 litros de leite é diferente de uma área que produza 1000 litros, mas, se envolvemos dez famílias nisso, a demanda é repartida”, avalia André de Oliveira Rocha, 41, coordenador do setor de produção e cooperação ambiental do MST no Nordeste do Pará.

Rocha conheceu o movimento há 14 anos, quando cursava fisioterapia na UEPA e militava no movimento estudantil. Formou-se, entrou para o MST e, desde então, fez a graduação em agronomia na Ufra e o mestrado, novamente na UFPA, em agricultura familiar e desenvolvimento sustentável.

Para o dirigente sem terra, manejar a agricultura familiar em uma área florestal, como previsto no SAF, ajuda a “manter a natureza como aliada da produção de alimentos”, ainda que sob intervenção humana.

“É possível trabalhar a agricultura imitando uma floresta, e, a partir disso, de forma consorciada ou alternada, com a técnica agroflorestal, produzir grãos, frutas, proteína animal, produtos madeireiros e não madeireiros, ervas medicinais, mel, gado de maneira absolutamente sustentável”, afirma. “E isso tudo sem desmatar, ou, inclusive, recuperando áreas desmatadas”, complementa.

Conforme o coordenador do movimento, o projeto político defendido pelos sem terra, o de uma reforma agrária popular, reforça o mote de uma exploração ambiental mais sustentável à medida que não é feita de modo extensivo. No entanto, ele ressalva que “não basta só dividir a terra”, se não houver política pública que incentive o manejo dela contrário à extração da madeira, às queimadas e a outras formas de degradação vistas na Amazônia “principalmente a partir do latifúndio como exemplo”.

Precisamos de produção de alimentos para o campo e a cidade, e pensando a Amazônia como um bioma de floresta, não tem manejo mais acertado que os SAFs — especialmente porque a gente associa isso com a agroecologia, sem uso de veneno, sem adubação química.

André de Oliveira Rocha, coordenador do setor de produção e cooperação ambiental do MST no Nordeste do Pará

“Nesse cenário, é preciso incentivar comércios locais e tecnologia apropriada ao pequeno agricultor, menos atrelada a esse modelo energético do agronegócio”, completa.

Rocha coordena uma área de sete assentamentos do MST. Ali, ele conta, são produzidas também mudas, em viveiros coletivos, para venda e para implementação de SAFs em outras localidades. Ano passado, de acordo com o dirigente, foram produzidas 103.455 mudas de árvores frutíferas e de essências florestais em estimados 259 hectares de terra. Neles, vivem hoje 65 famílias.

Mas não foi sempre assim: data do ano 2000 a discussão sobre o SAF pelo MST, com propostas internas de manejos mais sustentáveis. “Até pelo histórico de povos ribeirinhos, indígenas e quilombolas, esse tipo de manejo era o que sabiam fazer de melhor aqui na Amazônia; desse diálogo começamos os quintais agroflorestais, e então ampliamos para os SAFs nos lotes”, explica.

O que melhor rende hoje em produtos nativos amazônicos para as famílias sem terra na região é o açaí: além de ser a base da alimentação regional e de crescer relativamente rápido – até três anos após o plantio —, tem mercado a toda hora, inclusive para exportação, razão pela qual se tornou uma das culturas priorizadas nas agroflorestas do movimento.

“O açaí se encaixa no conceito de soberania alimentar com que o MST trabalha desde sua origem: não é produzido só para vender e produzir renda, mas também estar sempre presente à mesa das famílias do movimento”, completa Rocha.

Arquivo pessoal

Agroecologia virou “razão da vida” após marido ser assassinado

Uma das adeptas dos sistemas agroflorestais do MST paraense é a agricultora Teófila Nunes, 68, a Téo. Pedagoga de formação, ela militou nas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), ligadas à Igreja Católica, antes de chegar ao movimento dos sem terra, no começo dos anos 1990. Hoje, cerca de 200 famílias vivem em lotes de 4 hectares cada.

Dirigente do movimento dentro do assentamento Mártires de Abril, na ilha de Mosqueiro, a 75km de Belém, Téo só começou a adaptar o lote de terra em que ela e o marido haviam se estabelecido há sete anos após o assassinato do companheiro. Também dirigente sem terra, Mamede Gomes de Oliveira foi morto aos 58 anos em uma suposta tentativa de assalto. Era antevéspera do Natal de 2012.

“Eu militava no setor de educação, meu marido, no de produção. Depois que ele foi morto, eu tinha que tocar nosso lote e ainda fazer isso nos princípios da agroecologia, porque havia sido nosso planejamento de vida desde que chegamos a essa terra. Era uma questão de vida não interromper esse projeto”, conta, ela que hoje vive com o irmão no lote.

O nome da área foi criado pelo marido de Téo como “Lapo”, sigla dele para “lote agroecológico de produção orgânica”. “O nome tinha também uma carga política em função de tudo o que vivemos quando chegamos à ilha: nas proximidades do assentamento, as chácaras privadas todas tinham com nomes bonitos e donos que espalharam tudo de negativo que puderam sobre o nosso movimento: que havíamos trazido crimes, doenças… As crianças sem terra também sofreram muito preconceito”, lembra. “Mesmo com essas dificuldades todas, meu marido me disse: ‘Nosso modo de vida vai ser aqui, e nossa vai ter um nome, como as demais.”’, ela conta.

O lote de Téo ainda não está totalmente produtivo, embora, desde a morte do marido, ela venha implementando a agrofloresta em moldes totalmente agroecológicos. “Passei a adotar a adubação verde, com biofertilizante, minhocas”, diz. A produção de Téo é diversificada: o carro-chefe é o açaí, mas ela também cultiva outras nativas da região, como pupunha e cupuaçu, além de manga e plantio de mudas de plantas medicinais, fitoterápicas, ornamentais, e outras que podem ser usadas para produção de cosméticos, como perfumes, gel e tintura. Também não falta peixe no lote, que fica em uma ilha.

Hoje, a agricultora também coordena uma associação de mulheres do MST na qual trabalha desenvolve atividades voltadas à autonomia financeira delas. É na associação, por exemplo, que elas fomentam a culinária camponesa com ingredientes da terra — uma das vitrines da feira nacional do MST.

“A democratização da terra é essencial para que a reforma agrária aconteça e para que mais gente possa construir sua autonomia. Agora mesmo, com a pandemia, eu posso até não estar vendendo como antes, mas eu não compro o que preciso consumir. Construir a autonomia e soberania alimentar é muito importante e nos fortalece como pessoas -especialmente quando somos solidários com quem precisa”, define Téo. De acordo com ela, o assentamento doou mais de 500 cestas básicas no estado a famílias mais impactadas economicamente em um contexto de crise sanitária.

O autossustento não muda só a opinião das pessoas: ele move a economia, muda o modo de vida. Que os governos possam implementar políticas públicas capazes de injetar bilhões na agricultura familiar, e não as migalhas que eles os dão, porque esse é o modo de produção que mata a fome e faz com que a terra cumpra sua função social: produzir alimento saudável. Josy Pinheiro Josy Pinheiro

No Acre, agentes ajudam a implementar manejo em aldeias

Em outra região da Amazônia, em reservas indígenas do Acre, a irradiação de sistemas agroflorestais tem ocorrido desde a década de 1990 graças, principalmente, à formação de agentes agroflorestais que são capacitados para atuar com as diferentes tribos da região. Muitos deles são integrantes dessas comunidades nativas e que, após o conhecimento de técnicas de manejo do solo, buscam mesclá-las com o conhecimento de seus povos, em um processo de soma, não exploração.

A capacitação dos agentes é coordenada pela CPI (Comissão Pró-Índio) do Acre, organização que completou recentemente 40 anos de atuação.

Segundo a ecológa Julieta Matos Freschi, coordenadora técnica de projeto da CPI-Acre, a demarcação das terras indígenas, nas últimas décadas, acabou impondo novos desafios a respeito do manejo dessas áreas aos indígenas que viviam nelas previamente. Dessa forma, estimular a recuperação de áreas degradadas, bem como a exploração delas por meio de sistemas agroflorestais, passou a ser alternativa que garantia um melhor aproveitamento dessas áreas, agora sob a nova realidade da demarcação.

“Com o desafio de os indígenas terem de pescar, caçar e ainda dispor de madeira para construir a própria casa e o barco, nessas áreas demarcadas, isso começou a aparecer no debate, nas salas de aula, na formação que já fazíamos de agentes de saúde”, conta a coordenadora.

Com os agentes de saúde pensando já em 1996 na recuperação de áreas degradadas, explica Julieta, a CPI começou então a atuar pela formação de agentes agroflorestais que fossem capazes de orientar as comunidades indígenas das demarcações a manejar as áreas por meio de agrofloresta.

“Os agentes eram pessoas definidas nas aldeias como representantes de cada uma; começamos essa formação em 1996 com 15 agentes agroflorestais de quatro povos. Hoje, 25 anos depois, são mais de 150 agentes agroflorestais em 25 terras indígenas do Acre – em um trabalho feito na interface entre conhecimentos tradicionais de cada território indígena e os novos conhecimentos. Há um diálogo entre culturas”, explica a ecológa.

Nessa interface, ela destaca, aspectos como conhecimento e língua indígena são tratados como prioridades. “Há uma ação muito forte também sobre aspectos da agroecologia, a fim de que não se usem agrotóxicos, sementes híbridas ou transgênicas – mas o intercâmbio, por exemplo, entre variedades criolas e nativas”, define.

A proposta da comissão é que, de cada agente agroflorestal, se proponha o plantio de uma agrofloresta de 1 hectare, via mutirão — e, nesse modelo, o maior número possível de espécies frutíferas e alimentares, além de produção de madeira, plantas medicinais e artesanatos diversos.

A formação dos agentes agroflorestais é extensa: eles têm os cursos de formação no Centro de Formação dos Povos da Floresta, da CPI, em uma área rural nos arredores da capital Rio Branco. O sítio onde a formação é realizada, de 25 hectares e comprado pela comissão há quase 30 anos, é onde o trabalho pode ser exercitado com características mais práticas.

“Era uma área toda degradada, de pasto, que foi recuperada nos cursos, na prática — ali os agentes implementam técnicas de compostagem, horta orgânica, produção de aves, além de praticarem o manejo de animais como galinhas, quelônios e tracajás. Até mesmo o manejo da caça e pesca é trabalhado para que se encontrem novas formas — eles evitam caçar com cachorros, por exemplo, porque o impacto dessa atividade seria muito grande com os animais silvestres. É uma conscientização intensiva”, classificou.

Os professores nesse centro já têm alguma interface ou pesquisa acadêmica com os territórios indígenas: são acadêmicos que se deslocam de diversas universidades do país, como USP (Universidade de São Paulo), UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e UFAM (Universidade Federal do Amazonas).

Os agentes agroflorestais formados têm nível médio técnico profissionalizante. A formação é reconhecida pelo governo do estado do Acre. “Os SAFs de hoje nesses territórios demarcados trabalham também com espécies que não são originárias dali, como os cítricos, mas que passaram a fazer parte da alimentação do branco e não são espécies invasoras. Espécies como acerola, abacate e manga, que vieram do contato com o branco e depois foram enriquecidas em processos diferentes, acabam auxiliando ainda na diversificação da dieta alimentar, já que, embora a terra esteja demarcada, a população tem aumentado e isso traz desafios também”, afirma.

A coordenadora da CPI destaca ainda outra consequência das agroflorestas nessas comunidades, para além da recuperação de solos degradados: a melhoria da merenda em escolas da região, especialmente por meio de oleaginosas como açaí, buriti e patuá, espécies ricas em nutrientes.

Ana Melgaço Ana Melgaço

Garantia de diversidade alimentar na tribo dos Hunikuin

Um dos agentes agroflorestais formado pela CPI-Acre é Yube Hunikuin, 37, da tribo dos Hunikuin, a maior do Acre. Ao todo, são 208 aldeias e uma população de 12 a 15 mil indígenas no estado e, uma parte, no Peru.

Hunikuin atuou nas duas gestões do então governador Tião Viana (PT) em uma comissão sobre assuntos indígenas. É pai de seis filhos — o mais novo tem três meses, a mais velha, 18 anos —, e acredita na adoção de manejo sustentável nesses territórios como forma de resistência ao extermínio das populações indígenas.

“Como filhos da terra, somos resistentes a tudo que afete a nossa cultura e nossa tradição”, afirma. “A existência dos povos indígenas no Brasil e no mundo, por si, já é fruto dos que resistiram à violência, ao massacre, à colonização – todos os dias, é a luta pela sobrevivência e para continuarmos como povo e sobreviventes do sistema”, avalia.

A adoção do manejo via SAFs, acredita o agente, é uma forma de preservar elementos como a ancestralidade e a religiosidade desses povos, uma vez que ambas estão diretamente relacionadas à força da natureza.

“Vivemos o massacre com a exploração dos seringais e hoje vivemos sob um governo totalmente contrário à Amazônia. Nossos novos desafios são nos readequarmos pelos nossos direitos e territórios e garantirmos um manejo que de fato nos ofereça de tudo — não só espaço para viver, como comida e medicina, mas garantindo isso também às futuras gerações”, explica.

“Sem terra, não temos vida: é nela que plantamos, nela que caçamos, é de onde extraímos a nossa medicina e onde cultivamos a nossa ancestralidade. A terra é nossa mãe, e não nos cabe tirar dela o que tem de valor sem dar nada em troca”, defende.

Os SAFs nos territórios indígenas têm ajudado a complementar cultivos mais anuais, ele afirma, como macaxeira (mandioca) e milho. “A agrofloresta trouxe a complementação de espécies frutíferas e exóticas que nos auxiliam a melhorar nossa autonomia alimentar. Se todos fizessem sua parte, a Amazônia hoje estaria muito melhor”, acredita. Divulgação/Embrapa Divulgação/Embrapa

O que o futuro guarda para os novos manejos na Amazônia?

As agroflorestas podem representar uma chance real de se mitigarem os danos causados pela devastação na região amazônica?

Para os entrevistados nesta reportagem, isso depende da implementação dessa modalidade em escala e, sobretudo, de políticas públicas que a estimule.

“O autossustento não muda só a opinião das pessoas: ele move a economia, muda o modo de vida. Que os governos possam implementar políticas públicas capazes de injetar bilhões na agricultura familiar, e não as migalhas que eles os dão, porque esse é o modo de produção que mata a fome e faz com que a terra cumpra sua função social: produzir alimento saudável”, define a agricultura e líder sem terra Téo Nunes, do MST no Pará.

Para o agente agroflorestal indígena Yube Hunikuin, no Acre, não basta o incentivo às agroflorestas, se os entornos delas, em grande parte dos casos, estão tomados pelo desmatamento.

“Chegando ao território do meu povo, só se vê fazenda, de rios margens desmatadas. Faltam políticas públicas claras, por parte do governo, reforçando o quanto é importante preservar floresta. Mas o que a gente vê, em geral, é o incentivo à criação de gado”, critica. “Ganhei dez mudas de castanheira, no ano 2000, e fui fazendo outras dezenas, levando castanheiras a outras aldeias. Esperamos que haja mais apoio e visibilidade a esse tipo de manejo que preserva às gerações futuras — e que isso se torne uma cultura de respeito ao nosso território”, finaliza.

O diretor de conservação e restauração de ecossistemas do WWF-Brasil, Edegar Oliveira, destaca que há todo um potencial de informações na floresta capaz de trazer respostas à ciência – especialmente, à medicina.

“Nos últimos 25 anos, 75% moléculas criadas tinham como base uma referência da natureza. Ela tem todo um potencial de informações: da tribo indígena que usava uma folha para reduzir o tempo de coagulação nos animais, por exemplo, se originou um medicamento importante para o mundo [a copaíba é um exemplo]. Faltam políticas públicas mais fortes em termos de pesquisa, financiamento, investimento de fato em criar condições para que essas atividades prevaleçam sobre o desmatamento”, analisa.

Outras questões, defende o agrônomo, dizem respeito a como agregar tecnologia ao manejo agroflorestal na região amazônica, a fim de que a produção ganhe mais escala, e a mudança do discurso oficial em relação ao desmatamento.

“A própria fala da ministra da agricultura [Tereza Cristina, do DEM] é a de que não precisa desmatar mais a Amazônia pela produção agropecuária, só que, ao mesmo tempo, há mensagens muito claras do atual governo que validam o desmatamento, a grilagem de terra, a mineração em terras indígenas”, pondera.

O professor Breno Rayol, que pesquisa os SAFs pela Ufra, sinaliza: implementar esse tipo de manejo na Amazônia, de forma coordenada entre ciência e povos nativos, pode mudar a relação do homem com a terra até mesmo pela perspectiva de bem futuro.
“À medida que se aumenta o número de espécies cultivadas, aumenta a complexidade do manejo também – uma tradição que costuma passar de pai para filho. A vocação da região é a biodiversidade, e pensar sistemas que unam isso com a produção de serviços e de bens é essencial”, aposta.

“Pensar a agrofloresta não é pensar só o agora: ela demanda um prazo maior que os cultivos mais temporários. E você ter a segurança de que aquela terra é sua e passará de uma geração a outra da sua família faz com que se plante árvore, se mantenha a floresta de pé. É essa segurança também que garante uma mudança de mentalidade, de cultura, de relação com o meio ambiente.”

Por UOL

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