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ONU reconhece, pela primeira vez, que existem refugiados climáticos

O ano era 2002. O jovem Ioane Teitiota, nascido na década de 70 ao Sul de uma pequena e paradisíaca ilha chamada Tarawa, ao sul de Kiribati, nação-ilha do Pacífico, tinha acabado de ser demitido, numa crise que abalava sua localidade. As mudanças climáticas provocavam aumento do mar e ressacas violentas. Um rápido crescimento populacional – a população aumentou de 1.641 pessoas em 1947 para 50 mil em 2010 – também colaborou para transformar a região, que deixava de ser um sedutor convite a se observar os encantos de um mar outrora límpido e calmo.

Com o aumento da população, a escassez de terras gerou tensões sociais. E a falta de água potável tornou-se um drama recorrente para as famílias, já que o lixo também cresceu, sem estrutura para reciclar ou sem local apropriado, e era jogado em qualquer lugar, contaminando, assim, as cinco reservas subterrâneas. Tempestades cada vez mais intensas e frequentes estragavam o que restava de produção agrícola.

Havia diques construídos para tentar segurar o mar, cada vez mais alto, mas eles não davam mais conta, e a terra onde se plantava estava ficando salgada. O governo local começou a tentar agir, a fazer programas que diminuíssem o desconforto da população, para ajudar as pessoas a conviverem com o aumento da densidade demográfica e com as mudanças climáticas. Mas nada que se pudesse ser feito dava resultados a curto prazo para um jovem que queria imaginar seu futuro com mais qualidade de vida, sobretudo porque, recém-casado, planejava ter filhos.

Foi assim que Teitiota e sua esposa decidiram atravessar os quase cinco mil quilômetros de distância (quase dez vezes a distância entre Rio e São Paulo) que os separava da Nova Zelândia, um dos países mais desenvolvidos e mais industrializados do mundo. Chegaram lá em 2007. Conseguiram emprego, alugaram uma casa, tiveram três filhos, mas nenhum deles teve direito à cidadania do país onde nasceram porque eram considerados filhos de Kiribati.

Ioane Teitiota e sua esposa estavam em Nova Zelândia com visto de residência, ou seja, o país os suportava, mas não queria aceitar que fossem moradores definitivos. Também não podiam ser considerados Refugiados e/ou Pessoa Protegida, como pleiteavam, seguindo regras do Direito Internacional. Apesar de Kiribati não oferecer condições de vida com qualidade, o país vizinho não reconhecia ser sua obrigação acolher o casal.

Segundo o Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos da ONU, 17,2 milhões de pessoas tiveram que deixar suas casas em 2018 por causa de desastres que afetaram negativamente suas vidas.

“Mudanças lentas no meio ambiente, como a acidificação dos oceanos, a desertificação e a erosão costeira, também estão afetando diretamente os meios de subsistência das pessoas e sua capacidade de sobreviver em seus locais de origem”, diz o estudo, publicado em julho do ano passado.

Visto após visto, Teitiota e sua família iam conseguindo permanecer no país que abraçaram como se deles fosse. Até que, em setembro de 2015, tiveram sua licença negada e foram deportados para Kiribati. Nova Zelândia não os queria reconhecer como refugiados. Teitiota foi para a Justiça, solicitar proteção contra aquele país, após argumentar que, em Kiribati, sua vida e a de seus familiares corria risco por causa dos efeitos das mudanças climáticas e do aumento do nível do mar.

O que ele mais queria era voltar a morar em Nova Zelândia, onde criou raízes durante oito anos. Não conseguiu porque as Nações Unidas não entenderam que havia risco imediato de vida para Teitiota e sua família. Mas o julgamento tornou-se histórico porque o comitê da ONU decidiu que, num período de dez a quinze anos, por causa das mudanças climáticas, “poderá haver atos de intervenção da República de Kiribati, com a assistência da comunidade internacional, para tomar medidas afirmativas para proteger e, quando necessário, realocar sua população”.

Teitiota não se tornou o primeiro refugiado climático do mundo, conforme comenta a pesquisadora em Ciência Política e pesquisadora de Desenvolvimento Internacional na Universidade de Guelph, Ontário, Canadá, a chinesa Yvonne Su, no site Climate Home News. Mas a decisão do comitê reconheceu essencialmente que existem refugiados climáticos, uma novidade para o organismo da ONU.

“A decisão reconhece uma base legal para a proteção de refugiados para aqueles cujas vidas são iminentemente ameaçadas pelas mudanças climáticas”, escreve Su.

Em comentário ao site, o alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, Filippo Grandi, confirmou que a recente decisão significa que aqueles deslocados pelas mudanças climáticas devem ser tratados como refugiados pelos países beneficiários:

“A decisão diz que se você tem uma ameaça imediata à sua vida devido às mudanças climáticas, devido à emergência climática, e se você cruzar a fronteira e for para outro país, não deverá ser enviado de volta, pois estaria em risco de vida, como em uma guerra ou em uma situação de perseguição. ”

Esta decisão, embora não tenha beneficiado Teitiota diretamente (talvez caiba algum recurso), certamente é histórica porque pode abrir a porta para futuras reivindicações legais por pessoas deslocadas em todo o mundo por causa dos efeitos climáticos. A questão vai ser provar que a vida está correndo perigo para um tribunal que estará em defesa de países ricos e poderosos, como Austrália e Nova Zelândia, destino certo para as populações das pequenas nações-ilha que, como já se sabe, estão destinadas a desaparecer do mapa com o aumento do mar.

Teitiota não conseguiu, mesmo com todas as evidências de que é impossível plantar e beber água no local onde nasceu, já que a água salgada está invadindo tudo. Mas causou um rebuliço interessante, que pode mesmo ser usado como um marco da nossa nova era. Nas redes sociais, um bate-boca entre Enele Sopoaga, primeiro-ministro de Tuvalu, outra nação-ilha condenada, e o primeiro-ministro australiano Scott Morrison, depois da decisão final para o caso Teitiota, dá o tom do desafio que as próximas gerações terão que enfrentar:

“Você está preocupado em salvar suas economias. Estou preocupado em salvar meu povo”, disse Sopoaga a Morrison.

Vai ser assim, cada vez mais. De alguma forma, os líderes mundiais vão ser pressionados a tomarem medidas que melhorem a qualidade de vida das pessoas, considerando as questões climáticas como um problema real.

Por Amelia Gonzalez, G1

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